São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Na era dos dinossauros

HELIO GUROVITZ
DA REDAÇÃO

Herman Goldstine, 82, é um dos raros sobreviventes da equipe que revelou o projeto secreto do Eniac (Computador e Integrador Numérico Eletrônico) ao público em 15 de fevereiro de 1946.
Capitão no Laboratório de Pesquisas Balísticas do Exército e matemático, ele era o oficial de ligação e um dos coordenadores da equipe que fez o Eniac na Universidade da Pensilvânia.
Seu superior na época, o coronel Paul Gillon, morreu no último domingo. Na segunda, Goldstine falou à Folha de seu escritório em Filadélfia (EUA), concluindo por telefone uma entrevista iniciada por correio eletrônico.
*
Folha - Que clima precedeu a criação do Eniac?
Herman Goldstine - No período antes da Segunda Guerra Mundial havia forças se movendo para preparar os EUA para a guerra. Os intelectuais perceberam que havia uma necessidade imperativa por ferramentas inteiramente novas para enfrentar o inimigo.
As pessoas entendiam que não era possível lutar nessa guerra com os métodos e ferramentas da anterior. Era necessário um novo conjunto de idéias e armas. Em particular, o Departamento de Ordenança do Exército e a Força Aérea precisavam de equipamentos mais sofisticados para produzir as tabelas necessárias aos equipamentos de disparo e bombardeio.
As armas tinham de ser capazes de disparar em alvos que se moviam a rápidas velocidades. Os métodos convencionais de usar equipes de homens e mulheres para fazer os cálculos à mão não eram adequados, porque a quantidade de trabalho necessária aumentava exponencialmente.
Folha - Como o sr. se envolveu com o projeto do Eniac?
Goldstine - Eu estava dando aulas na Universidade de Chicago. Meu mentor e amigo Gilbert Bliss, chefe do Departamento de Matemática, ficou doente e eu tive de dar aula em seu lugar. Uma das aulas era um curso de pós-graduação em balística exterior.
Como resultado dessas aulas e de ajudar Bliss a escrever um livro sobre o assunto, fiquei bastante familiarizado com as técnicas necessárias para cálculos balísticos. Quando chegou a minha vez de vestir a farda e ir para a guerra, fui enviado a Aberdeen, como subordinado do coronel Paul Gillon, diretor-assistente do laboratório.
No período entre as guerras, Vannevar Bush inventou uma máquina chamada "analisador diferencial", para resolver um tipo de equação comum em engenharia elétrica. Os "balísticos" em Aberdeen e os engenheiros elétricos na Universidade da Pensilvânia se reuniram e construíram duas dessas máquinas irmãs.
Quando a guerra começou, as pessoas em Aberdeen e na universidade concordaram com a necessidade de o Exército tomar conta do analisador da Pensilvânia para estabelecer um segundo laboratório de cálculos para o Exército.
Depois que cheguei a Aberdeen, eu e o coronel Gillon visitamos o escritório em Filadélfia (Pensilvânia) e ficamos muito decepcionados com o que vimos. Gillon me designou para dirigir o local e torná-lo eficaz, o que fiz.
Folha - Quando ficou claro que um computador digital seria melhor que o analógico?
Goldstine - Estava claro que um computador analógico tinha uma precisão limitada, pois substituía uma idéia matemática por um processo físico. A precisão do analisador, de quatro casas decimais, era de utilidade apenas marginal.
A essência da máquina digital é que é possível obter qualquer precisão desejada, só acrescentando unidades idênticas em paralelo.
A velocidade tornava dispositivos digitais eletromecânicos indesejáveis. Foi a noção de que era possível substituir peças mecânicas aos solavancos por elétrons a velocidades próximas à da luz que favoreceu a abordagem eletrônica.
Na universidade, fiquei amigo de um jovem físico que queria construir um computador eletrônico digital. Fiquei convencido de que esse era o caminho a seguir.
Aproximei-me de um antigo membro da Escola Moore da universidade, John Grist Brainerd, um hábil homem de eletrônica, e obtive com ele uma cópia do manuscrito de Mauchly descrevendo uma dessas máquinas. Isso me inspirou a discutir a idéia com Gillon.
Brainerd convenceu as autoridades da universidade a sancionar o projeto. Ele designou um jovem estudante de pós-graduação, John Presper Eckert Jr., para encabeçar os trabalhos de engenharia. Foi uma circunstância das mais felizes.
Gillon chamou a máquina de Eniac (Computador e Integrador Numérico Eletrônico), e o trabalho começou por volta de 1º de junho de 1943, continuando até 15 de fevereiro de 1946, quando a máquina foi revelada para o público.
Folha - Como foi seu encontro com John Von Neumann numa plataforma de trem e como ele se envolveu com o projeto?
Goldstine - Ele era um consultor de muitas agências do governo, inclusive do Laboratório de Pesquisas Balísticas, e estava presente a uma reunião no laboratório em 1944. Quando a reunião acabou, ele foi para a estação de trem em Aberdeen, para pegar o trem para Princeton, onde vivia.
Cheguei à estação independentemente, voltando de uma visita a Gillon. Só havia nós dois na plataforma. Eu estava meio receoso a me aproximar daquele grande homem, mas tinha uma enorme admiração e humildade ao ver aquele que era o Mozart da matemática -quero dizer com isso que ele começou a fazer matemática de grande qualidade muito cedo, era um verdadeiro virtuoso, e um homem de raro senso de humor. Mas meu desejo de conhecê-lo venceu.
Ele viu diante de si um jovem tenente que afirmava ser um companheiro matemático. Foi muito gentil e pareceu um pouco aborrecido. Pouco depois, perguntou-me o que eu fazia para ajudar a ganhar a guerra, e eu contei a ele sobre a máquina de computação, que eu me gabei de ser capaz de fazer 333 multiplicações por segundo.
Ao ouvir isso, ele mudou completamente e passei por uma sabatina até chegarmos a Filadélfia, onde o deixei. Tornei-o consultor do nosso projeto Eniac, e ele vinha cerca de uma vez por semana, quando estava na Costa Leste, e escrevia longas cartas semanais, quando estava em Los Alamos.
Folha - Qual foi a contribuição de Von Neumann?
Goldstine - Von Neumann foi capaz de trazer contribuições ao novo problema: projetar uma nova máquina, o Edvac (Computador Eletrônico de Variável Discreta), muito melhor que o Eniac. Sabíamos que o Eniac tinha muitas válvulas, 17 mil, e muito pouca memória, apenas dez posições.
O projeto do Eniac estava pronto e estávamos com uma certa ociosidade, exceto pelo fato de querermos projetar uma nova máquina com poucos milhares de válvulas e memória de mil posições.
Von Neumann deu uma grande contribuição a esse projeto: após várias conferências, ele foi para Los Alamos e me escreveu uma série de cartas, que eu reuni num caderno chamado "First Draft on the Edvac" (Primeiro Esboço do Edvac), de John Von Neumann.
Ele contém o projeto lógico de um computador com programa armazenado, e o conteúdo reunia idéias de todos os que frequentavam essas reuniões: Eckert, Mauchly, Arthur Burks e eu.
Muitas pessoas que trabalhavam em projetos de guerra ouviram falar desse relatório e providenciaram cópias. Ele espalhou a idéia de cálculos digitais muito rápidos.
Folha - O Eniac foi um projeto militar. Até que ponto as informações eram secretas?
Goldstine - Ele foi mantido em segredo até sua inauguração. Então fizemos uma oferta para qualquer universidade usar a máquina, se o governo não precisasse.
Folha - O sr. sabia de tentativas semelhantes por parte da Alemanha para desenvolver um computador digital?
Goldstine - Não tinha idéia.
Folha - Que características distinguem o Eniac dos computadores atuais?
Goldstine - Se você pensar nos computadores de hoje como mamíferos, ele era um dinossauro...
Folha - Foi então uma espécie de avô das atuais máquinas?
Goldstine - Certo.
Folha - Que tipo de divergência levou à separação da equipe que fez o Eniac?
Goldstine - Foi uma briga sobre patentes. Eckert e Mauchly queriam patentear o invento. Von Neumann e eu não queríamos. Nós dois pusemos tudo o que escrevemos em domínio público.
Folha - Na época, havia idéia clara do poder do computador?
Goldstine - Tínhamos consciência de que teria grande importância científica. A primeira vez que tive idéia da importância para negócios foi quando um homem de Londres chegou a Princeton. Tinha um grande negócio de vendas no atacado e queria um computador para tomar conta das cobranças.
Folha - Que computadores o sr. usa hoje?
Goldstine - Tenho um computador pessoal em casa, um no escritório. Uso a Internet, correio eletrônico. Ainda faço computação, como hobby. Estou muito velho também.

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