São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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no fundo do quintal

Construir um avião em casa é quase tão fácil quanto montar miniaturas de aeromodelismo
por Cristina Zahar
O Brasil possui uma legião de seguidores de Santos Dumont (1873-1932). Apesar de fanáticos, eles não frequentam cultos nem adoram a imagem do mestre. Mas têm duas coisas em comum com o pai da aviação: adoram voar e, como Dumont, constróem suas próprias máquinas voadoras.
Só no Brasil, são 2.000 pessoas apaixonadas pela aviação experimental, espécie de laboratório da aviação comercial. Segundo o DAC (Departamento de Aviação Comercial), há pelo menos 539 aeronaves construídas em fundo de quintal voando por aí. Outros 1.114 pedidos de autorização para construir aviões experimentais aguardam o sinal verde do órgão.
São engenheiros, microempresários, estudantes e muitos outros, que sonham em alçar vôo a bordo de suas invenções malucas. É o caso do pedagogo Antonio José Ronald Leite do Canto, o Roni, 56. Ele foi o primeiro homem a construir um Trike (asa-delta motorizada) no país, em 82. "Vi o modelo em uma revista norte-americana e resolvi fazer algumas adaptações", conta. Confeccionou a asa-delta com o mesmo tecido usado em guarda-chuvas, colocou um motor de lambreta e rodas para aterrissagem. O troço não só voou como voa até hoje.
"Arrebentei o Gafanhoto"
A paixão de Roni pela aviação fez com que ele voasse mais longe. Em 84, iniciou a construção do Gafanhoto, um monoplano de madeira e tela equipado com motor Volkswagen de 1.600 cc. "Voei dois anos com ele até que um dia fiquei sem gasolina e acabei caindo. Arrebentei o Gafanhoto", diz, com a maior naturalidade.
Atualmente, trabalha em dois modelos do avião canadense Renegade. Um deles está pronto para os testes que o licenciarão junto ao DAC. É um modelo acrobático para duas pessoas, com duas asas (uma em cima, outra embaixo), feito em alumínio tela e e equipado com motor VW de 2.100 cc. Mede 5,40 m de comprimento, tem autonomia de vôo de 540 km e desenvolve a velocidade de 192 km/h.
O projeto ficou dois anos parado e Roni levou três para concluí-lo. Nem a demora nem o custo (US$ 12 mil) o desanimaram. "Tem muito tabu em torno do tema. Na verdade, construir um avião é mais simples do que parece", afirma.
Para desmitificar o assunto e ajudar os aprendizes de professor Pardal, foi criada em 1989 a Abraex (Associação Brasileira de Aviação Experimental). Com sede em São Paulo, a associação tem 200 sócios pagantes que se reúnem todas as terças à noite, no Campo de Marte. A Abraex presta qualquer tipo de informação aos interessados em construir aviões em casa.
Seu presidente, Humberto Peixoto Silveira, 46, diz que o primeiro passo é escolher o modelo da aeronave: há pessoas que vendem plantas ou kits de aviões. Depois, é preciso entrar com o pedido de autorização junto ao DAC. A construção leva em média cinco anos. Com o avião pronto, é necessário pedir a inspeção de um engenheiro aeronáutico e proceder aos testes. Brevê em uma mão e licença do DAC na outra, é só decolar para o primeiro vôo.
Estimular a criatividade
A aviação experimental é regulamentada pela ONU (Organização das Nações Unidas) e tem como objetivo incentivar a criatividade. Serve também de laboratório para a aviação comercial. "Os flaps da asa do Boeing, feitos em material composto, mais leve, foram inspirados na aviação experimental", conta o engenheiro mecânico Edson Zilio, 40, que está construindo um avião Cozy, norte-americano, para três pessoas, com duplo comando.
Proprietário de uma indústria que fabrica peças de plástico, Zilio começou a se interessar pela aviação comercial em 87. Comprou o projeto do Cozy por US$ 300 e pôs mãos à obra. Ultimamente, não tem tido muito tempo para tocar o avião. "Se tiver três meses livres e US$ 5.000, termino", jura. Faltam o acabamento, as asas e o motor.
Assim como o pedagogo Roni, Zilio também acha que as pessoas devem lutar por seus sonhos. "Por que comprar uma aeronave quando se pode fazê-la?" Segundo ele, o modelo mais barato -um ultraleve avançado- custa US$ 17 mil. O Cozy, por exemplo, sai por US$ 37 mil. Há aviões bem mais caros, como o Glass Air, que chega a atingir 500 km/h e custa US$ 200 mil.
Mas quem garante que não há riscos de acidente? Zilio e Roni se lembram bem de um rapaz que morreu em 88, na Bahia. Ele e o irmão tinham acabado de levantar vôo quando uma das asas do Cozy se rompeu. O avião, com tanque cheio, caiu e explodiu, matando na hora os dois tripulantes. "Eles usaram materiais errados. Além disso, não entendiam bem o inglês e montaram o avião sem seguir corretamente as instruções", explica Zilio.
Casos como esse são isolados. Mas é por isso que a inspeção de um engenheiro aeronáutico é obrigatória. Também é obrigatória a colocação de uma placa no avião, com os seguintes dizeres: "Esta aeronave não satisfaz os requisitos de aeronavegabilidade, não sendo permitidos vôos de instrução. Vôo por conta e riscos próprios."
O presidente da Abraex acha que, por um erro de tradução do inglês, o texto não condiz com a realidade. Em vez de "não satisfaz os requisitos de aeronavegabilidade", diz ele, o melhor seria "não satisfaz os requisitos de homologação". Quando o DAC homologa um avião, ele está pronto para ingressar na aviação comercial.

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