São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tipicamente brasileiro

JOÃO SAYAD

O maior benefício do fim da inflação foi descoberto pelo Datafolha: a maioria dos entrevistados revelou que tem orgulho de ser brasileiro.
Um resultado mais importante do que o fim do imposto inflacionário e o preço estável do frango.
Com o orgulho recuperado de nós mesmos, abre-se a oportunidade de refletir novamente sobre o passado recente, sem mágoas e sem rancores. Podemos começar rediscutindo a indexação da economia brasileira.
A indexação está morta e enterrada. Podemos falar da defunta sem medo: seus segredos foram desvendados e ela não pode voltar.
Foi uma invenção tipicamente brasileira. Outros países a usaram, mas nenhum por um período de 30 anos, de uma forma tão generalizada e tão perfeita -acabamos com índices semanais e diários na época da URV.
Ela serviu para evitar alguns dos problemas da inflação, cumpriu o seu papel. Começou com os impostos; depois, foi para o mercado financeiro, que a adotou com todo o vigor.
Em 1967, foi a vez do câmbio. Os trabalhadores foram impedidos de se proteger corretamente pelas leis salariais.
Quando o governo militar acabou e as leis salariais viraram letra morta, os trabalhadores, após vários anos de salários corrigidos com atraso e imperfeitamente, reivindicaram correção semestral, trimestral e, finalmente, mensal.
Nesse momento, começaram os planos de estabilização. Estava decretada a pena de morte da indexação. Todos os planos tinham de exorcizá-la e, para isso, o ódio e o repúdio tinham de ser totais.
A indexação adiou crises e permitiu que atrasássemos a adoção de remédios amargos -recessão e desemprego- no período 74-79.
A afirmação tão criticada -"somos uma ilha de prosperidade"- não parece tão errada assim, 20 anos depois.
Compare nosso desempenho com o dos vizinhos latino-americanos -crescemos mais no período e investimos mais e melhor, inclusive na substituição de importações e na promoção de exportações.
Mesmo quando comparada com os EUA no período 74-79, a economia brasileira foi muito bem.
O que existe de brasileiro na indexação que podemos usar para os anos futuros e os novos problemas?
A essência do processo de indexação parece ter sido: a) adiar a solução de um problema doloroso e difícil -combater a inflação num país de pobres e ricos; b) inventar uma solução para conviver com o problema insolúvel daquela data; c) substituir uma fantasia, a da moeda estável, por outra, a indexação protetora.
Uma qualidade tipicamente brasileira, sem ironia; trata-se de reavaliar uma característica brasileira que tem sido tratada como defeito, sem muitas reflexões.
Poderíamos fazer analogia com a história da abolição da escravidão no século passado.
Primeiro, proíbem o tráfico de escravos por ordem da Inglaterra (mas cresce o contrabando); depois, libertam os escravos com mais de 60 anos; depois, os que nasceram no Brasil (quando completarem 21 anos).
Finalmente, a questão ficou madura, os escravos foram liberados e o imperador deposto. Tudo a seu tempo e a sua hora.
Homenageamos o sentimento abolicionista, mas adotamos a solução lenta, segura e gradual. A abolição não fez muita diferença para a situação econômica e política dos negros libertados.
Mas, para julgar a história, deveríamos comparar com alternativas -uma guerra civil americana?
Muitos argumentam que "os períodos de paz são páginas em branco". Será que as páginas em branco da história são as páginas escritas no momento oportuno?
A partir de agora, passamos a enfrentar novos desafios.
São problemas silenciosos e graves o desemprego e o futuro da indústria brasileira, com câmbio valorizado, tarifas baixas e sem suporte ou coordenação do governo, de mãos atadas pela destruição da burocracia e pelo discurso neoliberal.
Neste período de otimismo, torço para que a alma brasileira reproduza a habilidade e a engenhosidade da indexação.
No caso das negociações da Previdência, achamos o melhor caminho, deixando a solução para mais tarde, quando o mundo tiver soluções melhores e os brasileiros pobres forem menos pobres.
No caso da indústria brasileira, esquecemos a lição brasileira da indexação. Abraçamos o livre comércio como escoteiros obedientes. Hoje, investimentos no Brasil se resumem em TV a cabo, telefonia, fast-food e privatização.
Os setores mais dinâmicos do complexo parque industrial brasileiro, um dos melhores abaixo do Equador, enfrentam sozinhos as novidades tecnológicas da Europa, Estados Unidos e Japão.
Os setores tradicionais, como têxtil e confecção, enfrentam a concorrência desleal e a evasão fiscal dos países do Sudeste da Ásia e da China.
Para o desemprego, os japoneses inventaram uma fórmula bem brasileira -o "in-house unemployment", ou seja, o funcionário continua recebendo salário e trabalhando sem que seu trabalho seja necessário.
Os japoneses têm produtividade e preços para pagar por funcionários desnecessários que permanecem dentro da empresa. No Brasil, essa solução é impossível.
Não podemos nos enganar -embora o desempregado não tenha uma arena para dar voz à sua insatisfação, o desemprego é um problema concreto, que não precisa de economistas e teorias para explicar quais são os seus custos e inconvenientes.
E cresce silencioso apesar das estatísticas. Apesar do orgulho recuperado, seria muito otimismo imaginar que a criatividade brasileira consiga contornar as idéias do nosso tempo e achar uma solução para tantos desempregados?

Texto Anterior: Engenharia financeira; Contrato fechado; Cartões; Perspectiva; Balanço desfavorável; Impacto no pregão; Imóveis na Internet; Saindo na frente; Demanda atendida; Déficit público; O que pesa; Nova onda; Agências interligadas; Guerra nas prateleiras; No curto prazo; Em associação; Vendedores reunidos; Resultado antecipado
Próximo Texto: O elefante fugiu
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.