São Paulo, terça-feira, 13 de fevereiro de 1996
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Em que consiste a educação religiosa?

ANTONIO CARLOS FRIZZO

Acompanhando atentamente os trâmites que envolvem os estudos visando o cumprimento constitucional, artigo 210, noto com que facilidade ruídos e confusões são plantados, confundindo a opinião pública, sobretudo professores, pais e alunos, como se o ensino religioso (ERE) fosse algo inexistente no Brasil. Ouve-se mais os técnicos e menos os interessados na educação dos alunos.
Com a implementação do ERE no Estado de Tocantins, falta somente ao Estado de São Paulo o cumprimento constitucional. Em Santa Catarina, onde aconteceu o Fórum de Discussão Permanente sobre o Ensino Religioso Escolar, o ERE existe há 25 anos, com programas consistentes e professores permanentemente assistidos na atualização pedagógica.
Uma vez garantido no Plano Diretor da Escola, o sucesso do ERE será fruto de um processo forjado no diálogo aberto e no debate, por vezes caloroso, mas sempre envolvendo toda a comunidade escolar, cientistas da religião, todos aqueles que estão comprometidos com a formação integral do ser humano.
"Premissa e fundamento do diálogo é o reconhecimento da liberdade religiosa." Tal liberdade religiosa "não é exaltação de um subjetivismo sem limites, mas a condição mais conveniente à dignidade da pessoa humana na procura da verdade, procura que faz parte dos direitos e obrigações de todo ser humano" (DGAE, 210).
Recentemente, em conversa com uma autoridade do candomblé, tive a oportunidade de desfazer um grande equívoco: as aulas de ensino religioso não visam, em hipótese alguma, privilegiar a Igreja Católica. A história já deu provas suficientes de violações sangrentas quando não há respeito e diálogo com o diferente. Mas responder à pluralidade religiosa na comunidade escolar? Academicamente, quais as linhas fundamentais dessa mensagem?
O ensino religioso visa a educação da religiosidade dos alunos que, ao buscarem o sentido da vida, encontram as razões de existir e de estar no mundo, bem como as propostas de vida que surgem da descoberta de Deus. O ponto de partida e de chegada do ERE não são as doutrinas, ou como queiram chamar o conjunto de informações das inúmeras igrejas, e sim a vida em todos os seus aspectos.
A pessoa humana, no seu grupo social, tem uma identidade única e própria. A questão central será debater quem sou eu? Qual a minha relação comigo mesmo, com o outro, com o mundo e com o transcendente? Por que estou aqui neste mundo? Com quem convivo? Que sentido tem a minha existência? Tais questionamentos são comuns a todos os credos religiosos, pois têm por base temas do cotidiano e são pacificamente geradores de outros assuntos.
Diálogo, harmonia, honestidade, solidariedade, criatividade, senso crítico, respeito ao sagrado -à vida, à natureza, à cultura, à esperança; a meditação, a gratidão, a celebração da vida- são assuntos que evidenciam a necessidade e o prazer de abordar a religiosidade.
Os abusos cometidos -vilipêndio de objetos sagrados, proselitismo religioso- legitimam, manifestam claramente a necessidade da inclusão do ensino religioso na formação de nossas crianças e jovens. Não há o que temer. Negar às crianças essa possibilidade pensando nas dificuldades que surgirão no decorrer do processo como infra-estrutura, formação de professores, remuneração é um ato de violação de direitos.
Debruçar-se sobre os temas teológicos possibilitará aos alunos vivenciar a beleza que é a descoberta e aprofundamento sobre o Criador, bem como o modelo social a ser construído. Trata-se de descobrir os valores essenciais dos textos sagrados, das concepções do homem e da mulher na relação com o transcendente e sua proposta de vida.
Urge evidenciar o que as religiões têm em comum. Aqui entra a função das religiões, que é unir pessoas, povos e culturas em defesa da vida. O empenho do professor possibilitará o despertar da religiosidade presente na criança e a descoberta de diferentes concepções religiosas. A vida e missão dos fundadores, que para os cristão é Jesus, para os muçulmanos, Maomé, para os judeus, os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó.
Também terão a oportunidade de reconhecer o valor das religiões indígenas, até hoje conservadas nas tribos que sobreviveram ao massacre dos colonizadores brancos. As religiões africanas trazidas pelos negros, sua presença e ação comunitária. O surgimento das novas igrejas e movimentos e sua atuação na sociedade contemporânea.
Desde a pré-história homens e mulheres se viram desafiados a responder e estabelecer um relacionamento com o transcendente. Não há como negar a religiosidade do nosso povo. Os educandos poderão observar que as religiões muitas vezes se mesclam. Sentir o quanto as igrejas podem unir pessoas na construção da cidadania, nos mutirões de bairros, no combate à violência, na construção da paz, na reforma agrária...
A educação religiosa tem também compromisso com o universo sóciopolítico-cultural das pessoas. Oferece aos alunos um referencial ético-religioso para que possam avaliar e rever a vivência, costumes, modelos sociais e leis existentes. A vontade do Criador não compactua com a ordem atualmente estabelecida por grupos políticos legitimadores da opressão, violência e corrupção. A religião não idolatra a injustiça e nem pode ser conivente com ela.
Creio que as diversas instituições sociais, entre elas a escola, na prática dão provas suficientes de abertura para o diálogo ecumênico e compromisso ético respeitando e acolhendo o diferente.
Apegar-se a concepções preconceituosas, idealizar uma instituição alheia ao fenômeno religioso é algo no mínimo ultrapassado. Atitude anacrônica, talvez um desrespeito a tantas famílias e jovens que estão dando provas de acolher o ERE nas escolas da rede estadual de educação (Datafolha, 9/10/95).
O que desejamos é que as pessoas, abraçando a causa do ERE, ponham suas capacidades, potencialidades e talentos à serviço da sociedade, buscando pistas e alternativas que proporcionem à nossa juventude o encontro com a liberdade, a alegria, a justiça, a solidariedade; fontes inspiradoras de um mundo mais fraterno e igualitário.

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