São Paulo, terça-feira, 13 de fevereiro de 1996
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Surpresas

ANTONIO CARLOS DE FARIA

RIO DE JANEIRO - Michael Jackson surpreendeu quem esperava fartas doses de excentricidade. Depois de desembarcar de máscara, o cantor parece ter se ambientado e seduziu o Rio com demonstrações de simpatia.
Já o Rio não surpreendeu e mostrou mais uma vez suas contradições. Ofereceu um domingo cinematográfico, de verão e sol, no qual os traficantes da favela Dona Marta cobraram para permitir as filmagens de Jackson.
O presidente da associação de moradores do local resumiu a questão de uma forma prosaica. A gravação teve que ser autorizada pelo Itamaraty, pela prefeitura e pela Justiça, poderes externos à comunidade. É natural que também se submeta à aprovação dos traficantes, o poder próximo dos moradores.
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A favela tem cerca de 4.000 pessoas, na maioria empregados e subempregados da zona sul carioca. Moram apinhados num morro que fica bem atrás do Palácio da Cidade, a casa das recepções de gala da prefeitura, no outrora aristocrático bairro de Botafogo.
O quadro sintetiza a cara do Rio: o abandono dos moradores da favela e a deterioração de um bairro. Quadro pintado pela omissão de governantes e dos próprios moradores.
Os primeiros preocupados com suas prioridades que não correspondem às prioridades da cidade. Os segundos ainda engessados por uma tradição na qual a mobilização social é quase a mesma coisa que a subversão da ordem.
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A visita do "megastar" colocou o dedo na ferida carioca do convívio da miséria ao lado da deslumbrante beleza natural.
Muitos, como o governo estadual, preferem dizer que é preciso mostrar as belezas, impulsionar a economia e assim arranjar saída para a miséria.
É a nova versão para a parábola delfiniana dos anos 70, que pregava a necessidade do crescimento do bolo da economia para que a distribuição posterior diminuísse a concentração de renda. O bolo cresceu e, como sempre, só as mesmas bocas se serviram no banquete.
Os moradores do Dona Marta mostraram que não estão dispostos a compactuar com esse jogo de esperanças no futuro. Queriam e tiveram o prazer imediato de ver Michael Jackson. Como diria Spike Lee, fizeram a coisa certa.

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