São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Kids', a nossa sombra

JACQUELINE DE CAMARGO

Talvez você torcesse para que aquela garota chegasse a tempo e que seu intento fosse realmente impedir que o rapaz cometesse o terrível ato: por alguma razão mágica ela saberia que, se corresse, evitaria o encontro dos dois adolescentes para que a outra jovem, linda aos 13 anos, não repetisse sua própria história ao contrair Aids, na "primeira vez".
Mas, assistindo ao filme "Kids", agora lançado em vídeo, percebe-se que não há magia possível, não há "happy end" nessa Nova York epicentro do consumo e de seus dejetos.
Não. Aquela garota não chegou a tempo e talvez nem mesmo estivesse preocupada com a outra -ela precisava era partilhar sua dor, devolver sua tristeza, fruto do barateamento e da banalização da vida desses adolescentes retratados no filme. Mas, em que medida "Kids" espelha também a realidade brasileira?
Nova York exporta as entranhas de seu desencantamento. "Kids" nos fala menos sobre a disseminação da Aids entre os jovens do que sobre os meninos e meninas que, vítimas da ausência dos adultos, vivem jogados nas ruas daquela cidade. Jovens cujas carências são muito menos circunstanciais do que morais e espirituais.
"Kids" é a nossa sombra, enquanto omissão do poder público com relação às crianças e adolescentes do Brasil.
A solução para nossa péssima posição no ranking mundial de garantia dos direitos de cidadania passa pelas propostas de modernidade no trato com a questão educacional, como as divulgadas pelo Ministério da Educação.
Mas é importante que saibamos ainda que pouco se terá feito se não forem desenvolvidos programas de educação escolar específicos, mais comprometidos com aqueles que vão continuar a ser expulsos da escola, até que o Estado venha a ser capaz de mediar os fatores desenvolvimento e justiça social.
A nosso favor temos inúmeros exemplos de festas populares e de práticas culturais que deveriam ser assumidas em todo seu potencial criativo e agregador para se deter esse processo de desestruturação, nas sobras do mundo regido pelas leis do mercado.
É evidente a necessidade de se investir mais, não apenas na culminância dessa farra turística desmedida que é o carnaval, e que pode agregar um sem número de meninos e meninas durante o ano todo, em busca de uma convivência "mais fascinante do que o fascinante mundo do crime", como disse o carnavalesco Joãozinho Trinta.
Até lá continuaremos torcendo para que alguém chegue a tempo. Pelo menos de nos salvar do próximo farol.

Texto Anterior: Cidades se reúnem para comprar medicamentos
Próximo Texto: Governo do ES intervém em 4 hospitais privados
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.