São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 1996
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Só os tamborins salvam cadência do samba

HELIO ZISKIND
ESPECIAL PARA A FOLHA

Samba enredo tem essa missão de arranjar um assunto que dê pano pra muitas mangas. Cada ala veste uma manga e encarna uma parte do assunto. As partes saem dançando, uma atrás da outra, cantando o seu assunto.
Os assuntos deste ano são variados: Os Correios, o chocolate, as navegações, a noite, os loucos sonhadores, a virada do século 20, a comunicação, a luxúria e a vaidade, o grito de liberdade da juventude contra os preconceitos sociais.
Este último trazendo, inclusive, a inesperada afirmação de que "A Tropicália, em parte, mostrava na arte a democracia". Fiquei imaginando a discussão que teria motivado os autores a colocarem este "em parte" na letra.
Gostei do samba da Tom Maior: o assunto são os fios. Quer fazer uma experiência? Tente construir uma história, ou pelo menos emendar os seguintes fios: fio de marionete, fio de água, fio de cabelo, fio de luz, fio de pipa, fio de telefone, fio de aranha, fio de arame de trapezista, fio de ioiô, fio da esperança, fio dental, fio da moda, cordão umbilical, e todos eles dentro de um samba cantado numa linha de vento. Vale a pena ouvir pra ver como eles conseguiram.
É curioso como cada assunto se desdobra.
Correios: o início do serviço postal no Brasil, a carta do Rei, notícias se espalhando, os selos, o prédio dos Correios na avenida São João, a mensagem de alegria no Carnaval.
A Noite: a lua, as estrelas, as orgias, as fantasias, os brindes, os menestréis, luzes de neon, mil e uma noites, o clarear do novo dia.
Luxúria e Vaidade: começa com as mulheres na pré-história, vai para as "beldades da cultura greco-romana", as divindades africanas, o harém do Rei Salomão, as orgias de Luís 15, concluindo com "caminhada malhação/colesterol 'tô fora' prejudica o coração/sou geração saúde em busca da eterna juventude". Este também vale a pena conferir.
Agora, musicalmente é uma tristeza. As melodias e harmonias são totalmente padronizadas, presas a clichês. Fico pensando como que depois de tantos sambas deslumbrantes, inclusive de Carnaval, chegamos a essa condição de papel carbono usado no samba enredo.
O Paulinho da Viola já vem dizendo há vários anos que o samba está muito rápido, que precisa recuperar sua cadência. Os sambas enredo de São Paulo de 96 estão rigidamente apoiados sobre uma velocidade constante.
Estamos vendo os tambores baianos do Olodum, do Ilê, da Timbalada -só para dizer alguns- encontrando novos andamentos, novas levadas. Essa liberdade temporal permitiu fazer florescer mais uma vez uma música rítmica extremamente sofisticada e popular.
Estamos vendo como Jorge BenJor conseguiu desenvolver um tipo de canção capaz de alinhavar as narrativas mais desconexas, com uma impressionante capacidade expressiva. Mas o samba enredo está emperrado.
É claro que há momentos de beleza no disco dos sambas enredo. Carnaval é a temporada dos tamborins. Como são lindas as frases de tamborins.
Há momentos no disco em que flautas, teclados e tamborins tocam juntos, revelando motivos musicais entrecortados e assimétricos. Há paradas interessantes da bateria, estribilhos fortes.
Na categoria "Destaques Musicais", eu colocaria o bonito parênteses melódico do samba da Tom Maior, que criou uma atmosfera quase religiosa para falar do fio de luz divino.
O mais curioso é que antes de cada samba, há uma estrofe como que de apresentação. São cantadas num andamento mais lento e são bem diferentes umas das outras.
É como se no disco, que é o lugar onde o samba enredo é mais música do que desfile, os músicos perguntassem: e se fosse mais lento?
A Gaviões vai passar, trazendo uma nave encantada, uma tela com imagens do futuro, futuro em que o mundo não se acabou e a vida ficou mais bela.
A Camisa Verde vai vir com seus loucos sonhadores, pisando tão forte no Anhembi a ponto de abalar as estruturas.
Eu vou passar o fim de semana em casa, imaginando um desfile em que o samba enredo fosse "Dora", do Dorival Caymmi. Imaginou? Os clarins da banda militar tocando para anunciar "Dora agora vai passar, venham ver o que é bom" A ala das Doras requebrando e a arquibancada inteira, de pé, cantando: ô Dora... ô Dora...

HELIO ZINKIND, 40, é músico, formado em composição na USP, e concorda com Noel Rosa quanto ao fato de que batuque é um privilégio, pois ninguém aprende samba no colégio.

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