São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 1996
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Policiais e Justiça comum

HÉLIO BICUDO

Não se pode acenar com "compreensão", o mesmo que impunidade, numa sociedade democrática
Quando se fala em Justiça Militar das polícias militares convém lembrar, antes, que não se trata de Justiça Militar em sentido amplo, quer dizer, das Forças Armadas, esta sim criada quando da vinda de D. João 6º para o Brasil.
E é preciso também lembrar que as polícias militares tiveram sua origem nos pequenos exércitos que se organizaram nos Estados da recém-criada República justamente para defender a sua autonomia contra o espírito centralista da União, num Estado federado que apenas se iniciava.
Vai daí que essas forças militares tinham suas Justiças, tal qual ocorria com o Exército e a Marinha. A partir do instante em que essas forças passaram a exercer atividades de policiamento, pois se questionava seu isolamento nos quartéis, de onde saíam tão-somente quando convocadas para atender a momentos de convulsão popular, começou-se a debater a competência dessa "Justiça Militar" para o julgamento de delitos de natureza comum, como aqueles praticados nas atividades de policiamento, que são atividades eminentemente civis.
Instituídas as polícias militares, com a fusão determinada logo nos primeiros anos da ditadura militar das guardas civis com as forças públicas, o sistema, entretanto, permaneceu prosseguindo no questionamento, agora no âmbito do Poder Judiciário, relativamente à competência da Justiça Militar das PMs em julgar crimes comuns.
O Supremo Tribunal Federal pôs termo à discussão com a súmula 297, de 1964, determinando que oficiais e praças das milícias deveriam ser julgados pela Justiça comum nos chamados crimes de policiamento. Súmula que vigorou até 77, quando dispositivos do chamado "pacote de abril" determinaram uma nova inflexão da jurisprudência, atribuindo à Justiça Militar o processo e julgamento de crimes cometidos durante as atividades de policiamento.
Na verdade, as polícias militares são organizações híbridas: são policiais e militares. Militares enquanto forças de reserva e auxiliares do Exército, sujeitas às normas baixadas pela Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Estado Maior do Exército; são policiais quando servem à segurança pública.
Daí o equívoco de se atribuir o processo e julgamento de atos praticados enquanto policiais à Justiça Militar. E daí a instituição de uma Justiça especial, corporativa, para julgar policiais enquanto policiais, o que é inédito até mesmo na ótica internacional.
Mesmo nos países onde há polícia militarizada, como os "carabinieri" na Itália, da "gendarmerie" na França ou da "polícia montada" canadense, os seus membros são julgados nos crimes ocorridos no exercício de suas funções policiais por juízos e tribunais comuns.
O corporativismo gera impunidade e esta é a mola da violência.
Argumenta-se, contudo, que se os PMs não tiverem a sustentação de uma "Justiça especial" prejudicar-se-ia sua atuação na luta contra o crime.
O argumento é falacioso porque não se pode acenar com "compreensão", que equivale à impunidade, numa sociedade democrática, onde a justiça deve ser igual para todos e não um privilégio de alguns. E, aliás, é muito bom que se tenha a certeza na atuação da Justiça, porque é somente assim que se contém a violência policial, indiscriminada, como hoje acontece.

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