São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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De olho em nossas bananas

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Michael Jackson no Brasil, Madonna na Argentina -o Eldorado do show business agora é aqui, como o Haiti. Quem foi que disse que eles não se importam com a gente?
E ainda nem contamos Eichmann. O próprio: o verdugo de Auschwitz, julgado e executado há 34 anos em Israel. Como foi capturado na Argentina por um agente secreto israelense, o inevitável aconteceu: a maioria das cenas do telefilme "The Man Who Captured Eichmann" está sendo rodada em Buenos Aires, com Robert Duvall no papel do carrasco nazista.
"Não merecíamos tanto", ironizou um jornalista portenho, na semana passada. "Além de ultrajar a maior santa do país, Hollywood vai relembrar ao mundo algo que gostaríamos de esquecer: que a Argentina foi o maior abrigo de criminosos nazistas deste lado do Atlântico. Podem começar a chorar por nós."
Enquanto isso, chilenos e brasileiros respiram aliviados. Afinal de contas, o poeta Pablo Neruda sai como herói de "O Carteiro e o Poeta" e Michael Jackson não só já se mandou como seu clipe só irá dar uns 40 segundos de glória à nossa miséria.
No resto do continente, calma absoluta. Por enquanto. Dois graúdos produtores europeus se mostraram interessados em reconstituir a saga do czar do tráfico de drogas Pablo Escobar. (Suspense na Colômbia). Oliver Stone já se confessou apaixonado pela figura de Getúlio Vargas. (Frisson no Brasil). E se for mesmo verdade que um consórcio de cubanos exilados em Miami pretende financiar um longa-metragem sobre (e naturalmente contra) Fidel Castro? Dificilmente conseguirá ser mais ridículo do que "Che!".
Execrado em todo o mundo há 26 anos, "Che!", apesar de produzido pela Fox, não era tacitamente contra Che Guevara (interpretado por Omar Sharif) e a derrubada de Fulgencio Batista. Em todo caso, ninguém com as melhores intenções entrega a Jack Palance o papel de mocinho. No bisonho épico dirigido por Richard Fleischer, Palace usava a barba de Fidel.
Por razões que desconheço, no final dos anos 60 a América Latina entrou na pauta do cinema então chamado (sobretudo pelos críticos marxistas) de hegemônico. Além da Fox, também se importaram com a gente o cineasta italiano Gillo Pontecorvo e o americano Irving Lerner. O primeiro encantou as esquerdas com "Queimada". Ao tratar com dignidade a figura do rei inca Ataualpa, o segundo livrou "Real Caçador do Sol" (Royal Hunt of the Sun) da sanha dos cucarachas.
Com Marlon Brando no papel de um gringo a serviço da coroa inglesa, na segunda metade do século passado, "Queimada" se passava numa fictícia ilha do Caribe, onde os vilões, que deveriam falar espanhol, "hablavam" português. Pura conveniência mercadológica: os produtores não queriam desagradar aos espanhóis, cujo mercado cinematográfico é bem mais atraente que o português. Chamava-se William Walker o mercenário encarnado por Brando. Ele ressuscitaria 19 anos mais tarde, interpretado por Ed Harris, num épico meio Glauber, meio Brancaleone, que entre nós se intitulou "Walker - uma História Real", assinado por Alex Cox.
Walker existiu de verdade. Messiânico aventureiro do Tennessee, invadiu a Nicarágua a soldo de bilionários americanos com interesses na América Central e dela tornou-se presidente em 1856. Na marra, "por supuesto". Doido de pedra, foi retratado como merecia. De qualquer modo, não era, ao contrário de Guevara, Ataualpa e Evita, um mito latino-americano, mas seu antípoda.
Em matéria de mito, os nicaraguenses se deram por satisfeitos com Augusto César Sandino, líder guerrilheiro nos anos 30 deste século, traiçoeiramente assassinado pelo futuro ditador Anastacio Somoza. A este a televisão americana dedicou um filme mais ou menos recente, estrelado pelo porto-riquenho Raul Julia, que no final da vida especializou-se em assumir a persona de heróis do continente, como o padre salvadorenho Oscar Romero e o líder sindical brasileiro Chico Mendes.
Julia morreu sem realizar um de seus sonhos, que era viver Carlos Gardel no cinema. Se o tivesse realizado, quase certamente seria hostilizado pelos argentinos, que guardam como dobermans todos os orgulhos de sua raça. E não costumam dar sopa aos inimigos. A quizumba em torno de "Evita" tem antecedentes históricos, que remontam quase ao início do século.
Em 1917, um filme americano, "Captain Alvarez", estrelado por William Desmond Taylor, quase provocou uma guerra como a das Malvinas. Não porque abordasse a tirania de Rosas, mas porque seu único herói era um diplomata americano façanhudo e Buenos Aires aparecia na tela mais falsa do que nunca, emoldurada por apócrifas montanhas californianas. Triste sina a de Buenos Aires: quase sempre falsificada num estúdio qualquer. Assim foi nas duas versões de "Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse", em "Acossado" (Cornered, 1944), "Gilda" e "Serenata Tropical" (o primeiro musical americano de Carmen Miranda e pivô de uma crise diplomática entre as Casas Branca e Rosada).
Pelo menos da autenticidade das paisagens de "Evita" os argentinos não poderão se queixar.
Como tudo, também a autenticidade no cinema é relativa. Quando pela primeira vez os gringos se dignaram a filmar uma história ambientada na Argentina na própria Argentina, o resultado não foi dos mais felizes. "O Gaúcho" (Way of a Gaucho), apesar de dirigido por Jacques Tourneur, não resultou num bangue-bangue pampeiro digno de estima e consideração. Rodado nos últimos meses de 1951 e com o insípido Rory Calhoun de bombachas e chimarrão, só entrou para os anais por conta de um fatóide: durante as filmagens, a atriz Gene Tierney conheceu e se apaixonou por Ali Khan.
Dez anos depois, os gringos voltaram. Para outra espécie de tapeação. Tinham nas mãos uma história que não se passava na Argentina nem a este século dizia respeito, mas precisavam dos pampas e das montanhas do país para que o resto do planeta acreditasse que "Taras Bulba" havia sido filmado nas terras onde o cossaco de Gogol havia feito das suas. Daquela vez quem chiou foram os ucranianos.

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