São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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'Santa Evita' foi Mãe Ubu dos pampas

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Eva Perón (1919-1952) já andou nas telas, como atriz (com o nome de Eva Duarte) e como personagem, num filme de Marvin Chomsky, feito para a TV em 1981, com Faye Dunaway e James Farentino, no papel de Juan Domingo Perón. Nada tinha a ver com o musical da Broadway que Alan Parker ora recicla em Buenos Aires, mas é óbvio que se aproveitou da onda em torno de "Evita". Era tão ruim que até os argentinos que se lixam para a "deusa dos descamisados" o detestaram.
Só mesmo fora da Argentina ocorreria a alguém filmar a vida de Evita. Nem uma saga a favor os argentinos se permitiriam fazer. Livros, tudo bem. Tomás Eloy Martínez publicou, em meados do ano passado, "Santa Evita", assunto de uma extensa reportagem do "The New York Times". Não era, a despeito do título, uma hagiografia. Só às livrarias francesas chegaram, nos últimos tempos, mais duas obras sobre a personagem de Madonna: "Eva Peron", de Alicia Dujovne-Ortiz, e "Le Dernier Tango d'Evita", do italiano Gino Nebiolo, ambas críticas do festim macabro montado com o cadáver dela durante 24 anos.
A preocupação maior dos que a cultuam é com a imagem que ela venha a ter com o rosto e o corpo de outra mulher. Não importa que mulher, pois nenhuma, aos olhos dos seus idólatras, está à altura de encarnar a "santa portenha". Que santa nunca foi.
Calculista, narcisista, sentimental e canalha como Borges dizia ser o tango, Evita foi a Mãe Ubu dos pampas. Para entendê-la, é preciso entender o que há de estranho e noturno na realidade argentina. Para entender sua mitificação, é preciso entender a vocação dos argentinos para a necrofilia.
Atriz medíocre e secundária, numa época em que os corações do país pulsavam por Libertad Lamarque e outras divas da tela, Eva, então simplesmente Duarte, apareceu em meia dúzia de filmes no começo dos anos 40. O último, "La Prodiga", finalizado em 1945, teve seu lançamento suspenso por ordem da Casa Rosada. Evita, àquela altura já Perón e primeira-dama, não queria ser mais confundida com a Duarte.
Para mostrar que deixara de ser coadjuvante, pôs sob seu controle toda a indústria cinematográfica, movendo implacável perseguição àqueles que odiava e invejara. Atrizes, atores, cineastas e técnicos foram obrigados a procurar emprego em outras paragens. Libertad Lamarque, como a maioria, foi para o México.
Ao chegar ao poder, Evita dedicou-se a construir seu próprio mito, escamoteando tudo que pudesse turvar sua "pureza". Recriou sua vida pregressa e até documentos adulterou para que a acreditassem uma esposa devota e imaculada. Sua autobiografia, "La Razón de Mi Vida", virou leitura obrigatória em todas as escolas do país.
Ao morrer de câncer, ainda por cima com a idade de Cristo, foi instantaneamente canonizada. Seu embalsamador, Pedro Ara, tudo fez para que ela ficasse tão bem mumificada quanto Lênin. Talvez esperançoso de que um dia Evita viesse a ressuscitar, não extraiu, como é de praxe, os órgãos internos da defunta. Até hoje, porém, ela continua rija debaixo da terra, no cemitério de Recoleta, na capital argentina.

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