São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Poesia de resistência

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste Brasil de olhos postos nas miragens do Primeiro Mundo e de pés apressados no rumo da globalização econômico-cultural, a publicação de uma coletânea de poemas como "O Livro Diverso: a Peleja dos Falsários", de Bernardo de Mendonça (Graphia), soa quase como heresia ou anacronismo. Não cometerei, contra esses poemas, a injustiça de chamá-los nacionalistas ou regionalistas, dois adjetivos caídos em desgraça entre os bem-pensantes e bem-viventes. Advertido a tempo pelo dito de Vlaminck de que a inteligência é cosmopolita, a burrice nacional e a arte local, prefiro chamá-los localistas. Mas de um localismo em trânsito, se me permitem o paradoxo.
É que "A Peleja dos Falsários", peça de resistência dessa segunda coletânea de poemas de Bernardo de Mendonça, se ambienta no trajeto da estrada Rio-Bahia, comprazendo-se o tempo todo em enumerar os locais por onde transita -cidades e bares. Outrossim, para nada dizer do localismo dos cursos d'água invocados na "Cantiga dos Rios Que Bebi", os logradouros e as comidas da cidade natal do autor são arroladas no penúltimo texto do livro, "Cantigas Para a Cidade de Maceió".
Títulos como "cantigas", reforçados por subtítulos como "recitativo", "romances", "parolagem", apontam desde logo para um certo viés de oralidade. E o metro preferido pelo poeta é o redondilho menor, de quando em quando trocado pelo maior, da poesia folclórica e da literatura de cordel. À tradição de ambas esteve sempre ligado Ascenso Ferreira que, ao lado de Augusto dos Anjos, protagoniza a -não há por que temer o adjetivo- esplêndida "Peleja dos Falsários". Na mesma tradição foi buscar régua e compasso o João Cabral de Melo Neto dos "poemas em voz alta", cujo influxo é perceptível em "O Livro Diverso", menos como modelo que como horizonte.
No caso de uma poesia tão minuciosamente "construída" como a de João Cabral e de Bernardo de Mendonça, o termo "oralidade" deve ser tomado com mais do que um grão de sal. Designa não a espontaneidade descuidosa do "sermo vulgaris", mas uma estilização cuja economia artística exclui quanto haja nele de aleatoriamente espontâneo e negligente. E ao aproximar aqui os nomes do poeta mais velho e do poeta mais jovem, não estou querendo denunciar nenhum nexo epigônico de imitação que só sirva para confirmar o Mesmo, mas, ao contrário, destacar um nexo de sucessão criativa que, sem escamotear a noção de fundador, aponta para a emergência do Outro.
Em registro irônico, é o que está dito no poema de abertura de "O Livro Diverso", quando seu "escriba", ao declarar-se "museu e usina do lixo/ de toda a lira perdida", anuncia os ecos intertextuais que se vão fazer ouvir nos poemas ulteriores. Neles, o intertextual andará sempre acompanhado do metalinguístico que, vindo do Drummond de "Procura da Poesia", iria logo depois ecoar no João Cabral de "Psicologia da Composição" e "Fábula de Anfion".
Sob uma ótica entre irônica e depreciativa -como a de chamar-lhe "escriba"-, o poeta e seu ofício são tematizados a cada passo em "O Livro Diverso", título em que "diverso" pode bem ser lido como corruptela de "de verso". As referências a poetas brasileiros são iterativas: Ascenso Ferreira e Augusto dos Anjos protagonizam "A Peleja dos Falsários"; em "Citações" há epigramas sobre Anchieta, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Gonzaga, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Bilac, Mário de Andrade, talvez Oswald ("O Escolhido"), Torquato Neto; Fernando Pessoa, o único não-brasileiro, é o destaque de "Números". E na "Fábula" final, cujo subtítulo contrapõe "o verso e a mercearia", há como que um eco longínquo da objurgatória do prólogo de "As Primaveras" contra o "homem sério", que prefere "uma moeda de cobre a uma página de Lamartine". Embora o lúcido e ácido desencanto de Bernardo de Mendonça esteja a anos-luz das desconfiadas ilusões de Casimiro de Abreu, irmana-os o mesmo "despaisamento" num "mundo de coisas negociáveis", onde o simples anúncio de um livro de versos provoca exclamações: "Que coisa antiga (...) que coisa inútil (...) que coisa ridícula".
No texto com que se encerra "O Livro Diverso" e do qual foram tiradas as expressões aspeadas do parágrafo acima, seu autor troca o verso pela prosa e, em primeira pessoa, nos fala de sua "gaucherie" de poeta enfrentando nas ruas do Rio "a presença motorizada e buzinante" da "formidável simulação urbana de vida útil" e aguentando com horror "o pequeno coro de zombarias" aos produtos de sua arte. Pode-se ver, na primeira pessoa verbal dessa prosa de encerramento, uma espécie de recolha dos problemáticos eus de poetas disseminados pelos poemas que a antecederam. Problemáticos porque, dentro da ótica irônico-depreciativa a que já me referi, eles se comprazem em questionar a identidade da figura social do poeta -e identidade, com o seu oposto simétrico, falsidade, são os dois pólos em torno dos quais se ordenam as linhas de força da semântica de "O Livro Diverso".
Ambos os pólos ressaltam com particular ênfase na sua, como já foi dito, peça de resistência, "A Peleja dos Falsários". Trata-se de um poema longo em redondilho menor cujo narrador, identificado pelo pronome de primeira pessoa, sai a beber cachaça com o poeta Ascenso Ferreira, ao longo da Rio-Bahia, por sucessivos bares de Minas. Há um nexo de pertinência analógica entre cachaça e poesia em "A Peleja dos Falsários": na sua seção um, a poesia, "indústria da sina" em que "se destila/ o acaso na escrita", é comparada ao alambique em que se destila a cachaça. Mas, voltando aos beberrões do poema, eles cortam caminho para chegar a Leopoldina, onde, como é sabido, passou os últimos dias e foi enterrado o poeta Augusto dos Anjos.
Pela porta de um bar da cidade, que será o palco da cena principal do poema, Ascenso crê ter visto passar o vulto de Augusto. Logo em seguida surge no bar a figura do poeta paraibano, "a pele esticada/ na caveira ossuda,/ orelhas de abano/ e um bem cultivado/ e lhano bigode", e no breve diálogo que trava com ele, Ascenso, "bêbado irado", o escarnece e nega-lhe a identidade: "Augusto dos Anjos/ não é este viado! (...) Augusto dos Anjos/ não é este doido!". O escarnecido revida com igual negação: "Esse/ que estava aqui,/ contando vantagem,/ dizendo besteira (...) não é nem de longe/ Ascenso Ferreira".
Tal póstumo, fantástico, disparatado e polêmico encontro de dois poetas tão opostos entre si enseja ao narrador ressaltar-lhes as diferenças: cada um deles "observa o outro/ como se a si mesmo,/ ao avesso relesse". Num procedimento formal que, sob variadas formulações, vai reaparecer em outros momentos do livro -qual seja o recurso a séries de parelhas de elementos opositivos-, essas diferenças são desenvolvidas sobretudo nas secções quatro e seis, em que o fio narrativo é provisoriamente interrompido por longas sequências de dísticos do tipo de "Escreva: morena./ Releia: monera./ Escreva? pirão./ Releia: caixão". A primeira parelha ou dístico contrapõe, em anagrama ("morena" e "monera" têm exatamente as mesmas letras), uma palavra emblemática do popularismo de Ascenso a outra não menos emblemática do cientificismo de Augusto; semelhantemente, a segunda parelha constrasta, sob nexo de rima, uma iguaria da culinária popular com um termo chave da necrofilia do Eu.
Malgrado as fundas discrepâncias entre os dois poetas, eles têm em comum uma mesma aura de popularidade que, por opostas razões, lhes cerca (ou cercou, no caso de Ascenso Ferreira, hoje esquecido e ausente das livrarias) a figura e a poesia. Para sublinhar o equívoco dessa aura, a seção final da "Peleja dos Falsários" põe Ascenso Ferreira no centro de uma roda dos "grandes da terra", a cuja frente está o promotor público que o quer homenagear com um banquete; por sua vez, "o exótico Augusto" era outrora lido por "igual companhia/ de ricos e doutos (...) a dar gargalhadas" do seu extravagante vocabulário e das extravagantes rimas a que convidava. No fecho do poema, a empatia do narrador, afastando-se do loquaz e festejado Ascenso, vai toda para o "paraibano/ que o bar ignora" e com o qual ele, narrador, passa a dividir "o mais solitário/ ocaso de um bar/ em que andei bêbado".
Mas não é nessa seção final que a semântica do poema tem o seu centro de gravidade. Este avulta em duas outras. Primeiramente, num lance da seção cinco em que, aplicando o construto verlainiano do poeta maldito a "tantos (..) devastados(s)/ pela maldição/ de saber em vão", a voz narrativa os agremia no "esquisito clã/ dos que dão a vida/ por somente um verso/ que decifre o instante/ e alguém repita:/ ó mamãe, eu quero".
O último verso em grifo é de uma marchinha carnavalesca de Jararaca, a cuja "transparência" aspira a poesia de Bernardo de Mendonça, segundo informa o texto das abas de "O Livro Diverso". Ao invocar esse verso como uma espécie de imagem em abismo da missão e da ambição da poesia -decifrar algum instante da vida tão epifânico, que sua decifração possa valer a própria vida, o narrador da "Peleja" atribui especial significância à figura do poeta, reabilitando-a. A dimensão social dessa significância aflora no verso "e alguém repita": quando um leitor ou ouvinte repete para si ou para outrem um verso que o impressiona, está-lhe confirmando o poder decifrador, o sentido mais puro dado às palavras da tribo pela "destilação" poética.
Não há incoerência entre esse lance de reabilitação da figura do poeta e a ótica irônico-depreciativa por que é vista as mais das vezes em "O Livro Diverso". Uma coisa é conceber idealmente a missão da poesia; outra, ter os olhos abertos para a pragmática social que a constrange. O banquete com que "os grandes da terra" pretendem homologar o renome de um dos poetas da "Peleja", tanto quanto as gargalhadas com que os "ricos e doutos" liam as extravagâncias do outro, se confundem num mesmo ritual de incompreensão do que seja poesia e de para que serve.
O outro ponto-chave da semântica da "Peleja" avulta neste passo da sua seção oito: "(Avisem na terra:/ não eu em mim./ Há tudo, há todos./ Porém não há eu./ (...) Não existe eu:/ nem muitos, nem poucos,/ nem falsos, nem outros/ (...) pensa sem descanso,/ quem não é em si.)".
Difícil não ver aqui, intencional ou não, um eco do famoso dito de Rimbaud em sua carta dita do Vidente: "Porque EU é um outro". Na esclarecedora análise que faz da poética rimbaldiana, Hugo Friedrich não se esquece de completar a frase: "É falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim". Ao redimir o eu poético do comprazimento em si a que o acostumara o individualismo romântico e ao impessoalizar-lhe o olhar até o ponto crítico de ele se ver como outro, a lírica moderna pôs definitivamente em xeque a ipseidade do poeta. O exemplo mais teatral é o dos heterônimos de Pessoa e do "fingimento" como estratégia de despersonalização. Foi o que, em compasso microscópico, tentei exprimir num epigrama, "O Último Heterônimo", que dizia: "O poema é o autor do poeta".
Será que, nas anamorfoses amiúde desconcertantes e ambíguas a que a ótica ironicamente despectiva de Bernardo de Mendonça sujeita a figura do poeta, algo parecido não está sendo dito? Pelo menos, é o que faz pensar a recíproca negação de identidades na "Peleja". A identidade pública de Ascenso estaria não na poesia que escreveu, mas no renome que ela lhe granjeou: a este, mais do que àquela, é que visa o banquete de homenagem, no equívoco de preterir a poesia pelo poeta. E no Augusto ressurrecto "ad hoc" há uma preterição equivalente: o autor se agarra fantasmaticamente à autoria como tábua de salvação contra o esquecimento não de seus versos -alguns deles ainda vivos, posto que anônimos, na boca do povo-, mas de si próprio.
Não há tampouco como deixar de lembrar, neste ponto, outra passagem da carta do Vidente, em que Rimbaud escarnece os "velhos imbecis", que, apegados à "falsa significação" do Eu, insistem em se declarar "autores" desses "milhares de esqueletos" que são as obras geradas por sua "inteligência caolha". Salva de tal ossário pela sua "transparência", a marchinha de Jararaca ainda ressoa na memória de muitos, embora pouquíssimos a saibam dele.
Não sei se estas considerações meio descozidas e simplórias conseguem lançar alguma luz hermenêutica, mínima que seja, sobre as zonas de sombra dos 12 intensos poemas coligidos em "O Livro Diverso: a Peleja dos Falsários". Mas, com ter-nos levados de Ascenso Ferreira a Arthur Rimbaud, servem ao menos para mostrar que no local pode estar encapsulada uma "imago mundi" mais convincente que as fotopsias da globalização. E servem também para insinuar a suspeita de que no supostamente anacrônico pode subsistir uma atualidade menos fugaz que a do ortodoxamente "up-to-date".

A OBRA O Livro Diverso - a Peleja dos Falsários, de Bernardo de Mendonça. Editora Graphia (r. da Quitanda, 194, sala 1.201, Rio de Janeiro, CEP 20091-000, tel. 021/263-8762). 80 págs. R$ 12,00

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