São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Mitos latinos aguardam hora de virar filme

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Para os heróis mexicanos (Pancho Villa, Emiliano Zapata) o cinema da corte não economizou película. Nem atores de vulto, como Wallace Beery (Villa) e Marlon Brando (Zapata). Quanto aos mitos do resto do continente, às exceções de Guevara, Evita, Sandino e Chico Mendes, todos (ou quase todos) ainda aguardam quem descubra suas potencialidades cinematográficas.
Abaixo do Rio Grande, muitos já foram descobertos em seus países de origem, eventualmente com a ajuda de um cineasta de fora. Tal foi o caso do poeta revolucionário cubano José Martí, cuja trajetória o mexicano Emilio Fernandez eternizou na tela há 42 anos, filmando tudo em Havana. "La Rosa Branca" agradou pouca gente, mas ninguém acusou o filme de leviano ou mentiroso.
Iguais aos mexicanos, nesse ponto, só os argentinos. Haja vista o que fizeram com o nosso d. Pedro, o primeiro, e Domitila de Castro, protagonistas, em 1941, de uma luxuosa superprodução, "Embrujo", dirigida em Buenos Aires por Enrique T. Susini.
Já honramos d. Pedro com uma aparição cinematográfica ("Independência ou Morte"), mas, que me lembre, jamais devolvemos a cortesia de "Embrujo" aos nossos vizinhos platenses. Se um dia o fizermos, que a escolha não recaia sobre Juan Manuel de Rosas. A menos que, por alguma maluquice qualquer, se deseje criar um caso ainda mais rumoroso que o provocado pelas filmagens de "Evita".
Rosas foi uma das figuras históricas mais odiadas da Argentina. Até recentemente, nem seus restos mortais podiam entrar naquele país. Mas não há como negar que sua vida daria um excitante épico -tão ou mais excitante que a do herói número um da Argentina, Martín Fierro, duas vezes glorificado no cinema, por Rafael de los Llanos nos anos 20 e em 1968 por Leopoldo Torre-Nilsson.
Aristocrata da capital, criado no pampa e xodó dos "gauchos", Rosas empalmou o poder montado a cavalo, em 1829, e à frente do governo esmerou-se em trair e executar inimigos e antigos aliados. Foram tantas e tamanhas as atrocidades por ele cometidas que até hoje nenhum monumento em sua homenagem foi erigido na Argentina. Nem busto, rua ou praça ele fez por merecer.
Ao general José de San Martín, que ajudou o venezuelano Simón Bolívar a libertar boa parte da América do Sul do jugo espanhol, os argentinos dedicaram dois filmes: "Nuestra Tierra de Paz", rodado em 1929 por Arturo S. Mom, e "El Santo de la Espada", que Torre-Nilsson confeccionou em 1969. Menos importante historicamente, o general Domingo Faustino Sarmiento mereceu apenas uma oportunidade cinematográfica, e ainda assim de forma indireta, pois seu filho era o real protagonista de "Su Mejor Alumno", dirigido por Lucas Demare em 1944.
Sarmiento renderia um bom filme exclusivamente seu. Assim como seu cupincha, Bartolomeu Mitre. Quem se habilitar terá pela frente dois personagens quase tão execráveis quanto Rosas. Ao contrário deste, ambos odiavam os "gauchos", que consideravam o supra-sumo da barbárie. Sarmiento matou "El Chacho", o último dos caudilhos pampeiros, com requintes de crueldade e exibicionismo. Além de fraudar eleições, como Mitre, se picou para a Europa enquanto uma epidemia de febre amarela dizimava boa parte dos seus governados.
Embora por aqui também tenham vicejado figuras dignas de um filme, como Getúlio Vargas, Antonio Conselheiro, Santos Dumont, Assis Chateaubriand e do Barão de Mauá, prefiro e torço para que sejam imortalizados na tela aqui mesmo. Não obstante o interesse de Oliver Stone por Vargas, duvido que os demais citados atraiam a atenção de câmeras adventícias. Tampouco consigo imaginar que um produtor comprometido com financistas de variadas procedências possa engajar-se num projeto sobre as desditas do presidente Salvador Allende e do cantor Victor Jarra, este torturado até a morte pela ditadura de Pinochet.
Mais plausível e útil seria que alguém, com os recursos necessários, se dispusesse a concretizar em imagens o que o alemão Hans Magnus Enzenberger fez por escrito num dos capítulos de "Política e Crime": contar a passagem por este mundo de um demônio chamado Rafael Trujillo y Molina. Nunca este continente conviveu com ditador tão sanguinário e sem escrúpulos. E tão poderoso. Não era só em seu feudo, a República Dominicana, que mandava matar quem bem entendesse. Tinha sicários também no México, em Caracas, Paris e Nova York. Apoiado pela CIA, acabou justiçado por ela, de forma brutal, em maio de 1961. Sua carcaça foi jogada no meio de uma avenida ironicamente chamada George Washington. Que filmaço estamos perdendo.
(SA)

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