São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cordialismo sob suspeita

JOEL RUFINO DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Certa vez um jornal mandou a Minas um repórter investigar a incidência de lepra na população. Desembarcando na estação de Pouso Alto, a primeira pessoa com quem cruzou era sã, a segunda leprosa. Como era um preguiçoso, voltou ao Rio e fez o relatório: 50% dos mineiros do interior sofrem do mal de Hansen.
É uma piada má, inaplicável aos pesquisadores da Folha que nos deram esse "Racismo Cordial". A pesquisa é ampla e rigorosa e mereceu elogios de Florestan Fernandes: "Trata-se de uma contribuição empírica positiva à descrição de nossa realidade" (Folha, 10/07/95, págs. 1-2). Em que pese, no entanto, a qualificação dos autores, nada acrescenta ao conhecimento das nossas relações raciais. Milton Santos, entrevistado no livro, bateu duro: "Pesquisa não é estudo. Há dezenas de teses que mostram isso. Quantificar é até pior. Porque como não é estudo, ela prestigia o resultado que não tem obrigatoriamente validade" (pág. 60).
A ciência, que é tanto uma atitude quanto um método, só é útil quando se desgarra da ideologia, quando se indaga sobre si mesma, visando ao conceito e não ao número -quando é filosofia, numa palavra. Colher "fatos de sociedade", quantificá-los (ainda que com técnica rigorosa), para depois devolvê-los à sociedade como "fatos de verdade", nada tem de ciência. É, no fundo, o mesmo processo das telenovelas, cujos autores garimpam traços relevantes da psicologia da classe média urbana, filtram-nos pelo "padrão Globo de qualidade" e depois os devolvem no horário das oito como retrato do Brasil.
A cilada em que caíram os autores aparece já na capa. Título: "Racismo Cordial". Chamada: "A Mais Completa Análise Sobre o Preconceito de Cor no Brasil". Das duas uma: ou acham que preconceito de cor é o mesmo que racismo ou racismo é outra coisa e quis se vender gato por lebre. Como os autores/editores são honestos, é a primeira. Passaram inconscientemente de um ótimo "survey" à legitimação do velho clichê conservador: racistas são os outros, os segregacionistas, os nazis... Os nossos racistas são cordiais, garante, agora, o selo de qualidade "científico".
Os autores, na verdade, não distinguem racismo de racialismo. Este é a idéia de que há raças e de que o desempenho social dos indivíduos se explica por elas. Racialistas, por exemplo, são "Os Sertões" de Euclides da Cunha e o xingamento da professora Maria Theresa contra uma colega, narrado no livro -"lugar de negro é na senzala". Já racismo é uma forma de dominação, consensual ou imposta, de uma suposta raça sobre outra. É o caso do Brasil, onde brancos, negros e índios convivem há 500 anos em posições sociais distintas, os brancos sempre por cima. Essa hegemonia -esse "fardo"- foi elemento estruturante de nossa civilização, espécie de enzima que deu ritmo às nossas reações históricas. Está no miolo, portanto, das nossas infelicidades e nada tem de cordial ou sutil. As vias de exclusão dos não-brancos são aqui perversas e frontais: o mercado de trabalho, o ensino da história, a publicidade, a novela de televisão, a política, o crime...
A cordialidade brasileira está no discurso e não no comportamento. É uma inversão do real, um "trompe l'oeil", que só desaparece se o olho tem em vista o que está à volta; e no caso do racismo brasileiro o que está à volta é o atual padrão de acumulação (para usar um eufemismo), a droga, os sem-terra, a governabilidade, a crise brasileira em suma. Só contra esse pano de fundo o racismo e seu motor atual -pois não se compreende como ele possa ser um resquício da escravidão cem anos depois- tornam-se inteligíveis. Se uma investigação sobre relações raciais não desvela aqueles nexos, ainda (e sobretudo) que permaneça rigorosa, nada mais é que ideologia: a tomada de fatos reais, a sua recriação e devolução à realidade com objetivo de poder.
"Racismo Cordial" põe diante de nós a necessidade de uma segunda análise, cuja pergunta inicial deve ser: que significado tem a questão racial no contexto da crise brasileira? Pode-se chegar à conclusão de não ter significado algum, mas pode-se também descobrir -como estou convencido- de que é uma das nossas esfinges. Suspeito, com diversos pensadores políticos, hoje submergidos pela onda sociológica de filiação norte-americana, ocupada em medir mais que em compreender, que o lugar do negro não importa. O que importa é o negro como lugar.
Crise brasileira tem inúmeras definições, mas se pode talvez dizer que é, essencialmente, a nossa incapacidade de concluir a nação. Quanto mais crescemos mais excluímos -e isso, de passagem, nada tem de cordial. As fórmulas político-ideológicas à nossa disposição para pensar a crise e elaborar as estratégias de justiça social que nos tirem dela parecem esgotadas. Só os cândidos acreditam em partidos políticos, mesmo os decentes. É que todos, invariavelmente todos, olham o país desde um único lugar, o "topos" da modernidade. Negro não é uma etnia, nem uma população, muito menos uma raça (isso seria cair no racialismo, ou preconceito racial se se preferir). Negro é uma configuração social, um lugar a partir do qual se pode divisar o que de outros se esconde. É pouco e, no entretanto, é muito. Estaria a Folha disposta a empreender essa segunda análise, esse ir adiante que também o professor Milton Santos lhe cobra? Certamente.
Um pequeno reparo. Zumbi não foi o organizador de Palmares, como se diz no primeiro período do livro. Esse mérito cabe a Ganga Zumba, que o antecedeu em pelo menos 20 anos. O pequeno equívoco terá algum significado?

A OBRA
Racismo Cordial, textos e pesquisas Folha/Datafolha, de Cleusa Turra e Gustavo Venturi (orgs.). Editora Ática (r. Barão de Iguape, 110, São Paulo, CEP 01507-900, tel. 011/278-9322). 208 págs. R$ 18,50

Texto Anterior: RUI BARBOSA; UPDIKE; EL PASEANTE; PSICANÁLISE
Próximo Texto: Beleza rebelde
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.