São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Beleza rebelde

KATIA CANTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1990, a artista norte-americana Barbara Kruger utilizou outdoors espalhados em vários cantos do mundo para dirigir-se às mulheres: "Seu corpo é um campo de batalha", diziam tarjetas vermelhas, sobrepostas a imagens femininas retiradas do anonimato.
Se sobreposta a acontecimentos como a 4ª Conferência Mundial da Mulher, que aconteceu em Pequim em setembro do ano passado -onde o aborto e outros assuntos ligados à soberania da mulher em relação a seu próprio corpo pareciam gritos dissonantes de discórdia cultural- a mensagem da obra de Kruger soa profética.
O corpo, antes de ser um ente físico, estético, biológico, sexual, é uma poderosa e multifacetada instituição política. É essa a abordagem, tão original quanto complexa, que "Políticas do Corpo" adota. Organizado por Denise Bernuzzi Sant'Anna, professora de psicologia social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o livro justapõe oito artigos de pesquisadores franceses com um texto da própria Denise e outro da brasileira Stella Senra.
É conhecido o fato de que os valores e padrões que seguem a valorização física estão ligados a diferentes contextos sociohistóricos. Padrões de beleza evoluem. O corpo torce, estica, puxa, transmuta ao longo do tempo. Muda, das figuras femininas roliças de Boticelli, às raquíticas Twiggies da década de 60, ou, inversamente, das quase miniaturas humanas medievais às compactas massas musculares típicas dos corpos "malhados" dos anos 80.
O trunfo do livro é ir além da simples constatação dessas mudanças visíveis. O modismo da musculação, que nasce nos Estados Unidos, é visto, por exemplo, como diagnóstico do puritanismo da cultura protestante norte-americana. Ela institui que o corpo, domado pelo esforço do exercício, se purifique. Madonna, pasmem, é portanto personagem emblemática desse puritanismo depurado por meio da cultura física.
"Políticas do Corpo" disseca aspectos ainda mais inusitados das práticas corporais. Georges Vigarello relaciona aparelhos para correção postural, considerado método de manipulação morfológica, com a evolução do pensamento mecanicista e das instituições de autoritarismo político que surgem no século 17.
Jocelyne Vaysse toca nas dúvidas de identidade de pessoas que se submetem a transplantes de órgãos. Claude Fischler investiga as múltiplas implicações da gordura física. O autor conta que, na França, eleitores preferem políticos mais cheios de corpo. Talhados na imagem de um genérico e bondoso "papa gordo", os tais cheios de corpo gozam de uma empatia natural junto à população. Essa é a base do mito do gordo benigno, o gordo simpático e bufão à Falstaff.
Jean-Jacques Courtine denuncia o espetáculo kitsch do "body-building". Trata-se de um ato obsessivo, no qual o ser humano transforma seu próprio corpo num monumento imponente.
O músculo, que se torna um estilo de vida, é, além de narcisismo, uma religião de disciplina. Metamorfose e conversão corporal se confundem com conversão religiosa, atos de fé e até mesmo a "regeneração física" proposta pelo regime nazi-fascista e o aprimoramento racial que vem junto com essa ideologia.
Denise Sant'Anna constrói uma sensível leitura histórica do ideal de beleza feminino no Brasil. Recheado de anedotas, o texto comenta um tempo em que a feiúra era "curada" por remédios, como unguentos, banhos, pastas. Isso acontece, de acordo com a autora, entre 1900 e 1930. Há o tempo, até parte da primeira metade do século 20, em que a beleza, emoldurada numa base de moral católica e considerada simplesmente um presente dos céus. Quem julga as eleitas é invariavelmente um grupo de árbitros masculinos. Quanto às excluídas do hall seleto, bem, não há o que se fazer...
Ao contrário, a partir dos anos 50/60, junto com o feminismo, a mulher declara que qualquer pessoa pode ser bela. Chega do escravismo das eleitas.
Em seguida, surge a valorização da "mulher ao natural", que a propaganda se apropria com imagens femininas seminuas. A indústria dos cosméticos agradece.
Sant'Anna ainda discute a obsessão de algumas mulheres pelo excesso de limpeza corporal, o que corresponde a uma culpa e tentativa de "limpeza moral". O texto da organizadora é tão ou mais interessante do que "O Mito da Beleza", que fez da jovem neofeminista norte-americana Naomi Wolf uma best seller aos 30 anos.
"Corpos, Cinema e Vídeo", de Stella Senra é o capítulo mais antenado com a arte e a virtualidade anos 90. Os corpos projetados no cinema por Jean-Louis Schefer ou no vídeo por Bill Viola são corpos de um mundo sem gravidade, com desproporção de afetos e rastros de imagens que se dissolvem num rápido ofuscar de luz. É um mundo onde os corpos são artificialmente construídos, como o corpo de Michael Jackson e o de Madonna (ela, de novo). O corpo desprendeu-se dos limites anatômicos para ganhar o imaginário.

A OBRA
Políticas do Corpo, de Denise Bernuzzi de Sant'Anna (org.). Editora Estação Liberdade (r. Fagundes, 43, São Paulo, CEP 01508-030, tel. 011/270-6830). 191 págs. R$ 18,00

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