São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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A trindade do surrealismo

SERGIO LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

André Breton, Antonin Artaud e Tristan Tzara nasceram em 1896.
Breton em 18 de fevereiro, em Tichebray-sur-Orne, no interior francês. Artaud em 4 de setembro, em Marselha, na costa francesa do Mediterrâneo -aos seis anos já perguntava "o que é ser e viver", segundo testemunho de um dos seus textos iniciais, "La Criée" (O Proclamado), 1922. Tzara em 18 de abril, em Moinesti, interior da Romênia (iniciador da subversão sistemática com o dadá, Tzara voltar-se-á para "o imediato" das coisas, do exteriorizado).
Os três, poetas e personalidades de vulto no cenário contemporâneo. Nomes que se iniciaram nos desdobramentos finais do simbolismo, no decadentismo do fim-de-século, e, cada um de modo próprio, atravessaram a ponte que vai do final do século à germinação do surrealismo nos anos 20.
Breton iniciava-se como poeta e escritor, vindo de uma formação médica. A essa altura, 1920, já publicara sua primeira coletânea de poesias "Mont de Piété" (Monte da Piedade) (1919), participara em várias revistas e vinha dirigindo com Aragon e Soupault a revista "Littérature" desde março de 1919. Suas correspondências regulares com Theodore Fraenkel (desde 1912), Paul Valéry (desde 1914), Pierre Reverdy (desde 1917) etc., eram notórias; além de relações com Apollinaire, Picasso e outros artistas de seu interesse, como Picabia. 1920 também fora a data da "recepção" do dadá em Paris, por Breton e seus amigos.
Antonin Artaud chega em Paris neste ano, 1920. Imediatamente articula-se com o pessoal do teatro. Logo estará com Charles Dullin no Théâtre de l'Atelier. Firma-se assim desde o início como um homem do teatro, da "cena" e da representação. Suas participações também como intérprete no cinema são conhecidas, cobrindo praticamente a década de 1924 a 1935; começara em papéis para Abel Gance, Claude Autant-Lara e René Clair, (em "Entr'acte", 1924). Ao mesmo tempo que escrevia suas primeiras poesias -datadas de 1920/1921.
Logo escreverá o roteiro de "La Coquille et le Clergyman" (1927), infelizmente deturpada pela realização "vanguardista" de Germaine Dulac -os surrealistas serão os primeiros a se solidarizar com Artaud na denúncia do esteticismo. "Um Cão Andaluz" (1929), de Buñuel e Dalí, mostrará de que lado os surrealistas estavam.
Demetre Urmuz e Tristan Tzara participaram da revista "Chemerea" em Bucareste (1915), dirigida por Ion Vinea- na qual Vinea publica artigo-manifesto com toda a violência e a iconoclastia que logo será a marca do dadá, surgido um ano depois, sob a batuta de Tristan Tzara. Vinea já o prefigura, pois, em 1915. Observe-se que Urmuz, nome capital na revolução que se operava nas letras romenas, é reconhecido como o precursor das novas posições.
À negação como um fim em si do dadá, o surrealismo apresenta uma perspectiva humana, a de uma "busca" em seu senso mítico e transformador de poesia. Mais de um pesquisador já teve a oportunidade de sublinhar a esperança que vibra ao longo de todo o "Primeiro Manifesto do Surrealismo" -a esperança "com as portas batendo". E também, nas exegeses da poesia de André Breton, desde o "Poisson Soluble" (Veneno Solúvel) que acompanha o "Manifesto" há exaltação do feminino e da presença desejável e tangível da mulher, da mulher-mediadora.
A libertação do espírito em que se empenha o surrealismo, seus reenvios constantes ao "racional desregramento de todos os sentidos", ao desvelamento das vias reais do desejo e da imaginação da matéria, já bastaria para o diferenciar do episódio dadá. E dos vanguardismos do momento.
Antonin Artaud acabava de publicar sua primeira coletânea de poesias: "Tric-Trac Du Ciel" (Triquetraque do Céu). Desde 1923 mantinha uma correspondência com Jacques Rivière, editor da "Nouvelle Revue Française", que se recusara a publicar suas poesias. Nesta correspondência (dada ao público em 1927), Artaud já coloca toda sua tenebrosa vertigem à tona: "Eu sofro de uma assustadora doença do espírito. Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Do simples fato do pensamento até o fato exterior da materialização nas palavras (...)", 5 de junho de 1923.
Cartas que prosseguem, vorazes de uma crise extrema: "Esta dispersão de meus poemas, estes vícios de forma, estes deslizamentos constantes do meu pensamento não devem ser atribuídos a uma falta de prática, de possessão do instrumento que manejo, enfim do desenvolvimento intelectual; mas, sim, a um desmoronamento central da alma, a uma espécie de erosão, ao mesmo tempo essencial e fugaz, do (meu) pensamento (...)", 29 de janeiro de 1924.
E Rivière estava em contato com nomes do surrealismo, que colaboravam na "Nouvelle Revue Française". Assim, a vinda de Artaud para o grupo trazia o encanto de sua figura ("belo como uma onda, simpático como uma catástrofe", descreve-o em 1924 Simone Breton), suas declarações exasperadas, a angústia do vivido e a recusa da "ficção": "Por que usar aparências de ficção ao que se constitui da substância entranhada da alma?" (carta de 25 de maio de 1924, para Rivière).
Além do que, Artaud considerava-se mais surrealista que os demais -como diz na "Carta a Madame Toulouse": "... Além do mais sempre fui (surrealista) e, eu, sei o que é Surrealismo. É o sistema de mundo e de pensamento que fiz para mim, desde sempre. (...)".
Alçado à primeira plana do movimento (encarregado por Breton de editorar o nº 3 da "Révolution Surréaliste" e da direção do "Bureau des Recherches du Surréalisme"), Artaud tem uma atuação fulgurante, do início de 1925 ao final de 1926. Nesse período publica dois livros "Le Pèse-Nerfs" (O Pesa-Nervos) e "L'Ombilic des Limbes" (O Umbigo dos Limbos) e cartas abertas "aos Reitores das Universidades Européias, ao Papa, ao Dalai-Lama, às Escolas de Buda, aos Médicos-Chefes dos Asilos de Loucos".
Atuações nas quais seu individualismo também chega ao auge. Ao ponto de precisar: "Cinema, Revolução, danem-se, meu ser antes de tudo." (carta a G. Athanasiou, 5 de outubro de 1925). Justamente a palavra "Révolution" será o pomo de discórdia entre Artaud e a transformação radical do contexto social pretendida pelos surrealistas.
Ao fim do ano de 1925, Roger Vitrac, também homem de teatro como Artaud e seu amigo, é excluído por desavenças com Eluard (e problemas de alcoolismo). Em 1926 Louis Aragon, André Breton, Paul Eluard, Benjamin Péret e Pierre Unik entram para o Partido Comunista -ao que Artaud e Soupaul não aderem.
O panfleto assinado pelos cinco surrealistas agora também militantes, "Au Grand Jour" (maio de 1927), divulga a polêmica guinada política do movimento e as duas recentes exclusões.
Nessa ocasião, em resposta, Artaud publica o panfleto "À la Grand Nuit ou le Bluff Surréaliste" -especificando: "No fundo, todas as exasperações de nossa querela rodam em torno da palavra 'Révolution' (...) são uns revolucionários que não revolucionam nada... Sei que no debate atual estão do meu lado os homens livres, todos os verdadeiros revolucionários, os quais acreditam que a liberdade individual é um bem superior a não importa qual conquista obtida num plano relativo. (...)". (junho de 1927).
A ligação do grupo surrealista com o partido durará até os episódios de 1930/31, com a ruptura do "affaire Aragon" ("Front Rouge", 1932) e a denúncia do dirigismo que se instalara no comunismo soviético. Logo depois, o grupo surrealista formalizará a denúncia e a recusa do totalitarismo stalinista. Mais tarde a questão ficará clara: o "Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente" ocorrerá em 1938, 25 de julho, firmado por Breton e Leon Trotsky, no México.
Nestes anos de grande efervescência internacional do surrealismo (com atividades múltiplas, além de Paris, em Barcelona, Málaga, São Paulo e Rio de Janeiro, Lima e a revista "Que" em Buenos Aires; além de Praga, Bucareste, Tóquio, Cuba etc.).
Paralelamente ao movimento, Artaud publica, em 1929, "L'Art et la Mort" (A Arte e a Morte) -no qual se inclui o poema em prosa "La Vitre d'Amour" (A Vidraça de Amor); o roteiro cinematográfico "La Révolte du Boucher" (A Revolta do Açougueiro) e "Le Théâtre Alfred Jarry et l'Hostilité Publique" (O Teatro de Alfred Jarry e a Hostilidade Pública) saem, ambos, em 1930 -suas atividades à frente do Teatro Alfred Jarry, com Vitrac e Robert Aron, de 1926 a 1930, são acompanhadas de perto pelo grupo, com idas e vindas de apoio ou combate.
Em 1935, Artaud encena o que seria a primeira peça do seu "teatro da crueldade" -"I Cenci / Les Cenci". A total incompreensão o atinge fundo. Em janeiro de 1936 parte para o México. Faz umas conferências na Cidade do México e depois vai para a região dos Tarahumaras. Estará de volta a Paris em outubro. Vive em grande penúria. Publica anonimamente "Les Nouvelles Révélations de l'Être" (As Novas Revelações do Ser), em 1937. Mantém correspondência com André Breton e Jean Paulhan. Setembro, de volta da Irlanda, é internado. E não sairá mais dos asilos até 1946.
Em 2 de fevereiro de 1937, Breton publica "L'Amour Fou" (O Amor Louco): "A beleza convulsiva será erótico-velada, explodente-fixa, mágico-circunstancial ou não será".
Breton retomava o sentido mais fundo da expressão "revelação" que pressupõe os "fins passionais" do amor humano, o único a ser exaltado no movimento.
1937 também é o ano de exposições em Tóquio, Londres, Santiago (logo seguidas das duas grandes mostras internacionais em Paris e Amsterdã, em 1938). Note-se que as exposições do movimento nunca foram montadas nos moldes tradicionais (só artes plásticas), visto incluírem poesias, textos, fotos, projeções, objetos e, via de regra, serem montadas numa instalação inédita para cada evento. Ou seja, foram sempre exposições de "poesia" e não de uma técnica -a arte entendida como meio, nunca um fim em si.
Os anos de 1939 a 45 são marcados pelo exílio de boa parte dos surrealistas. Embora as atividades grupais continuem em Bruxelas e mesmo Paris, iniciam-se as ativações no Chile, México e em todo o Caribe; em Nova York, Québec, Londres, Bucareste, Praga, Rio de Janeiro e Buenos Aires são reativadas. Exposições internacionais no México e em Nova York, revistas etc.
André Breton fala aos estudantes na Yale University -"Situation du Surréalisme entre les Deux Guerres" (Situação do Surrealismo entre as Duas Guerras)- e publica: "Fata Morgana", "Pleine Marge", "Arcano 17". Reedita "Le Surréalisme et la Peinture" (O Surrealismo e a Pintura), seguido de "Genèse et Perspective Artistiques du Surréalisme et Fragments Inédits" (Gênese e Perspectiva Artísticas do Surrealismo e Fragmentos Inéditos); além da "Anthologie de l'Humour Noir" (Antologia do Humor Negro), em 1940, cuja edição fora interditada pela censura do governo de Vichy. De volta da América, no fim de 1946, Breton trará os textos de "Ode a Charles Fourier" (1947), "Martinique Charmeuse des Serpents" (Martinica Encantadora de Serpentes) e "Poèmes" só foram editados em 1948.
Data também de toda uma série de publicações, a partir de "Artaud le Mômo", como "Van Gogh, o Suicidado da Sociedade", "Ci-GŒt" (Aqui Jaz), "La Culture Indienne" (A Cultura Indiana), exposição de retratos e desenhos de seu período recluso etc.; mais um "Suplemento" às "Cartas de Rodez" (1946). Seu "No País dos Tarahumaras" saíra em 1945. Série que se encerra com sua derradeira publicação em vida: "Pour en Finir avec le Jugement de Dieu" (Para Acabar com o Juízo de Deus). Assim, tal fluxo faz com que os anos 46/48 assemelhem-se a sua explosão de 24/26.
Em 4 de março de 1948, Artaud é encontrado morto, sentado ao lado de sua cama.
Entre tempos, ocorrera a conferência de Tristan Tzara na Sorbonne (17 de março de 1947). Tzara retoma vários pontos do engajamento firmado em 1935 com Crevel e René Char, destacando de modo leviano "dois surrealismos" -o do engajamento na resistência político-militar (partidário da esquerda) e o do "escapismo" esoterista, como se alguma vez os surrealistas tivessem se posicionado como tal.
Breton na platéia, recusa-se a continuar ouvindo as inverdades pregadas pelo ex-companheiro, e chega às vias de fato. Os anos seguintes de Tzara serão passados num relativo ostracismo, à margem de qualquer vínculo com o movimento. Tristan Tzara morre em Paris (1963). Lembremos que Tzara não participou dos apoios a Artaud. (Nem René Char tão pouco, um dos nomes da resistência durante a Segunda Guerra).
Em 1961, André Breton voltará a dirigir uma revista do grupo, "La Brèche", na qual propõe num de seus editoriais -"Perspective Cavalière"- a necessidade de se passar a dimensionar o movimento surrealista a partir da sua presente atualidade e não mais em função da primeira revista, "La Révolution Surréaliste" (ou do primeiro manifesto, visto que existem outros três mais recentes, além dos "Prolegômenos a um Terceiro Manifesto ou Não"). Infelizmente a crítica não tem se mostrado atenta às correções de rumo do movimento, neste quase um século.
Em 1961, Breton publica sua última coletânea de poesias: "Le la". Ainda participa de mais três mostras internacionais, de 1961 a 1966. Reedita os "Manifestes du Surréalisme" (1962), "Nadja" (1963), "Le Surréalisme et la Peinture" (1965) e a "Anthologie de l'Humour Noir" (1966).
Em 28 de setembro de 1966, André Breton morre no hospital Lariboisière, Paris.
Benjamin Péret dedicara a Breton um poema-homenagem intitulado "Toute une Vie" (1949), no qual abre um verso que o emblema em definitivo: "Liberté liberté couleur d'homme" (Liberdade liberdade cor de homem).

SÉRGIO LIMA é escritor e artista plástico ligado ao surrealismo desde 1956; está publicando no momento "A Aventura Surrealista" (4 tomos) com destaque para as relações do Movimento com a América Latina, mais Portugal, Espanha e Estados Unidos; o "Tomo 1" saiu em outubro passado, pelas editoras Unicamp-Unesp-Vozes

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