São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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As duas faces da vida poética

FERNANDO PAIXÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estimulada pelos jornais e pela professora de hidroginástica, que em plena aula fez comentários sobre a beleza do filme, a espectadora fugiu à rotina e se encontra agora sentada na poltrona do cinema para assistir à história de amizade entre o carteiro e o poeta. Antes, porém, é obrigada a deglutir uma saraivada de metralhadoras, estrondos e desastres de automóveis -thrillers das novas atrações que ocuparão as telas em breve. Entre um anúncio e outro a respiração é pouca. Logo sobrevém a melodia suave adornando a cena inicial da saga de Mário, homem bom e simples, que tem a sorte de conhecer o grande poeta e aprender com ele lições sobre a vida.
Paira idílio no ar. O toque exuberante da natureza reforça visualmente a figura magnânima de Pablo Neruda, em seu auxílio para que o carteiro conquiste a namorada furtiva. Em situações como essa, bem sabemos que os versos constituem ótimo tempero. A arte da poesia também faz parte do diálogo entre os dois, quando o conceito de metáfora é explicado pelo poeta ao carteiro, à maneira de um segredo compartilhado entre amigos. O homem comum também pode se tornar poeta, o importante é ter os olhos sintonizados no sensível, concluiria a moral da história.
Quanto à espectadora, vê-se tomada de forte emoção e chora em silêncio -talvez por lembrar-se de algum caso antigo, fracassado porque talvez lhe tenham faltado palavras poéticas. Também ela desejaria conhecer um poeta assim: seria sua amiga, quem sabe amante -e imagina uma aventura salpicada de versos românticos.
Poesia e miséria
A poeta pobre e humilde aparece na revista "Veja", em página dupla, como se fizesse parte de um espetáculo que se inicia com as últimas atrocidades da guerra da Bósnia e culmina com o abstracionismo de um artista conhecido na cidade. O texto descreve em detalhes a penúria da poeta, relata suas queixas e estampa no centro um perfil de mulher, cuja fragilidade contrasta com a parede rabiscada de traços infantis. Busca-se o efeito da poeticidade.
Num apartamento do bairro de Higienópolis, a reportagem está sendo lida por um senhor distinto, no habitual descanso domingueiro. Também ele, no passado, escreveu versos e acreditou na força dos sentimentos. Mas a trajetória seguiu por outros caminhos, mais rentáveis para o bolso. Tendo diante de si o retrato amargo de uma poeta à beira da miséria, conclui que foi melhor assim. Afinal, poesia não enche a barriga de ninguém.
Outra lógica
Ficção e realidade, narrativa e notícia sugerem idêntica trama quando o poeta é chamado a ter um papel no conjunto das relações sociais. Resgatado na qualidade de pessoa sensível, em contato com o significado invisível das coisas, ou associado à condição de marginal e maluco, que vira as costas ao pragmatismo da esperteza, é frequente ver o poeta considerado como um ser que abraça "outra lógica". Sua diferença sofre juízo imediato, positivo ou negativo, sem maiores nuances.
Vista sob a aura do ideal, a figura do escrevinhador usualmente se enquadra nas categorias de sábio ou de louco. Mais que o romancista ou outros escritores, cabe a ele encarnar a missão literária por excelência: trabalha com significados sutis das palavras, percebe as fulgurações de passagem. Alçado à condição de explorador de limites, também a sua vida pessoal estaria jogando com o risco. Sua vivência contaria com o privilégio do êxtase ou, na outra volta do pêndulo, com o drama de um tormento cego. Passageiro do limbo.
No filme "O Carteiro e o Poeta" são notórias as pinceladas de exagero no aproveitar-se do vitalismo de Pablo Neruda, reconhecido como homem dedicado à sensualidade e à militância política. Vários diálogos e tomadas de câmera, acompanhando flagrantes do cotidiano, na verdade reforçam a leitura plana de que aquele homem sabe decifrar os segredos da conduta humana e compreende até mesmo os murmúrios do mar. Ao deparar com o carteiro, a sabedoria de um se espelha na pureza do outro e ambos, ao invés de se ignorarem, igualam-se na atmosfera solidária.
Os contornos não costumam ser diferentes, vistos em negativo. Poetas suicidas, "outsiders", com a biografia dramatizada por lances sensacionais, costumam render milionárias versões cinematográficas, algumas com direito ao Oscar, várias páginas de jornal e muitas edições de livros. Ao leitor ansioso, movido pela curiosidade, interessa mais a crônica do desespero que o mergulho no imaginário de versos obtidos em assombro. Especula-se sobre o tipo humano e voltam-se as costas para a poesia.
Ideal solitário
O fato é que, tomado como símbolo do desregramento, o escritor ganha uma errância desconhecida -às vezes solar, outras vezes noturna-, que permite o vislumbre de outra percepção. Neste caso, não se trata apenas de imaginar uma vida diferente, intensa com o outro sexo e circunscrita em paisagem poética (escapismo que personagens de outra ordem poderiam igualmente sugerir), mas principalmente de testemunhar uma vivência impregnada de especial sensibilidade. Nessa perspectiva, a figura do poeta se cristaliza e ganha contornos do ideal. Passa a servir de modelo, exemplo vivo de uma existência que rompe com o cotidiano alienado. A curiosidade em querer saber como "funciona" um caráter sensível pauta-se por esse tipo de expectativa.
Foi o romantismo do século 19 que, na ânsia de romper com o versejamento técnico e frio dos clássicos, firmou uma concepção do poeta como agente de sensibilidade privilegiada. Mago e profeta, mas também boêmio e apaixonado, era tido como portador de um entusiasmo sobre-humano, a quem cabia captar sinais do mistério e do transcendente. Dedicado à solidão, porque incapaz de viver no plano terreno, sua genialidade tinha de ser extravagante e incompreendida.
No entanto, se no passado essa postura representou um avanço estético considerável, alargando o repertório de imagens e sensações a trabalhar na poesia, estereótipos dessa ordem podem configurar uma camisa-de-força. Ao supor que a produção poética depende de vivências levadas ao extremo, estamos na verdade privilegiando o sujeito em detrimento de sua obra. Leitores superficiais e espectadores ansiosos, caímos na facilidade de reduzir a essência da expressão aos horizontes da crônica biográfica.
Curiosamente, porém, o maior dos poetas brasileiros deste século apresenta uma vida magra de acontecimentos. Fugindo ao colorido dos atos de efeito, preso à sua classe e a algumas roupas, como ele mesmo o disse, o senhor Carlos Drummond de Andrade manteve por longos anos uma pacata rotina de funcionário público. Seus melhores ímpetos, ele não se furtou em consagrá-los à cordialidade. O mesmo se deu com Wallace Stevens, um dos inovadores da moderna poesia norte-americana, que trabalhou arduamente como alto executivo numa empresa de seguros, ocultando dos colegas de trabalho a atividade poética.
O que se esconde, então, por trás desse equívoco entre a vida real de quem cria e a sua imagem social?
Algo que é difícil aparecer em filme ou em revista. É que o verdadeiro poeta, mortal e cidadão como todos nós, só alcança de fato uma dimensão nova e reveladora quando age no coração mesmo da linguagem. Sem a baliza das concessões, ele sabe que atua no reino da língua comprometido com um sentido primordial, cujas palavras devem ter o que dizer. Trata-se aqui, sim, de uma proposição genérica, mas que nem por isso deve ser descartada; cada novo bom poeta que aparece renova frontalmente esse desafio, alargando o horizonte da própria voz.
Ora, quem lê poesia, mesmo que esteja descansando em sua poltrona, é atraído para uma maleabilidade de sons e sentidos em que o principio central é o do livre curso. Ritmo e imagens se mesclam numa sinuosidade não afeita aos ângulos da racionalidade, e os poemas se oferecem como que presentificando uma estreita e íntima zona de atenção. Da familiaridade com as palavras pode brotar, ou não, o frescor de poemas que testemunham a realidade sob o efeito de um elo inusitado e fecundo.
Quando um deles diz: "Esta noite eu te encontro nas solidões de coral/ Onde a força da vida nos trouxe pela mão./ No cume dos redondos lustres em concha/ Uma dançarina se desfolha", começa a desenhar um campo de sonho que serve de convite para quem está lendo. No entanto, compactuar com esse esforço requer uma atenção a que a maioria dos leitores não se dispõe. Mais fácil é acompanhar o espetáculo das variantes de comportamento que a indústria cultural tem explorado até a overdose. Por meio de filmes, das páginas dos jornais e da televisão nos é possível vivenciar o espectro das experiências de vida como um cardápio de atitudes.
Vista por esse ângulo, numa sala de cinema, em meio a um coquetel de enredos os mais variados, até a poesia pode se acomodar num clichê. O filme em questão bem que suscita esse enquadramento, mas nem por isso deve ser culpabilizado de todo. Independentemente de seus artifícios visando provocar emoção, o mais importante é deslocar o foco para o leitor, cabendo a ele acomodar-se a uma visão romantizada do poeta, ou enxergar além. Ou seja, no limite, a questão é minha, sua, pessoal e intransferível.
Rituais públicos
E os poetas? Não estarão muitos deles a modelar sua identidade no interior de semelhante jogo de aparências? Parece que sim. Centenas de livros de poesia são publicados mensalmente, em pequenas edições, que na maioria das vezes circulam apenas entre os familiares e amigos do autor. Noites de autógrafos são preparadas como rituais que tornam públicos os versos cultivados na intimidade. Aparentemente trata-se de um gesto desinteressado, mas organizado em todos os seus detalhes: quem é convidado, que vinho será servido, quem faltou etc.
A grande maioria das obras permanece no anonimato e mal chega às livrarias comerciais, pois dificilmente apareceria algum leitor interessado nos versos do poeta desconhecido da Vila Moraes ou dos Jardins. Poucos ultrapassam o limite do quarteirão e quase a totalidade permanece ao longo dos anos como resíduo pessoal, espelho para que o autor leia o seu próprio nome em letras de impressão.
Goza de prestígio entre nós o gesto humanista de cultivar a sensibilidade. Exprime-se e imprime-se a vivência pessoal por meio de versos que almejam romper o anonimato; até personalidades notáveis, como juízes, senadores e ex-presidentes se vêem fisgados por essa ambição -quase sempre apegados a uma poética de molde retórico. Os novos poetas, por sua vez, cultivam desde cedo o desejo de se diferenciar, trazendo para os versos uma ênfase biográfica que pouco tem de efetiva novidade. O radicalismo formal, o confessionalismo sexual e amoroso ou o intelectualismo pedante costumam ser as doenças infantis que atacam muitos poetas barbudos, e não apenas a eles.
Contrastando com o narcisismo temos a esfera da criação, cujos meandros exigem um bisturi minucioso e despersonalizado, tanto quanto possível. Claro que o ponto de partida de qualquer imaginação literária guarda um fundo pessoal incontestável, para que contenha efetiva fertilidade. Mas toda arte visa o olhar alheio; isso cria a exigência de um horizonte de imagens que tenham sabor universal e alcancem o leitor pela propriedade da expressão.
Apesar de óbvio, esse preceito deve ser observado à luz de cada poeta. Trabalhando suado ou no embalo da música, consagrado pela musa da inspiração ou distanciado dela, conhecedor de muitas línguas e literaturas ou apenas as do seu bairro, o autêntico poeta sabe que é a partir desse compromisso de alteridade que seus poemas ganharão força e brilho contra o desgaste do tempo. Mas essa consciência pousa sobre o fio de uma navalha: não há regra segura nem caminho certo para chegar lá. Não basta o texto fácil nem de retórica ideológica para garantir o encontro com o leitor.
Em resposta a um jovem escritor, Drummond disse que, como os poetas geralmente não têm pendência para os negócios nem para a arte da guerra, cabe-lhe como destino a contemplação da nuvem. Mas não se entenda nesta expressão, mais uma vez, o gosto nefelibata pelas alturas; pelo contrário, o contemplador das nuvens drummondiano é aquele que recusa as evidências de superfície e escapa seu olhar para o inesperado, mesmo que seja o disforme. Ele nos sugere uma saudável desconfiança em relação a uma realidade pronta e ideologicamente formatada; enquanto exercício apurado e fugidio, à poesia cabe essa distância.
Bons poemas são aqueles que bem delineiam as visões interiores, abrindo-as ao testemunho da leitura. Sem implicar redundância, eles se "preparam" para serem lidos; daí a necessidade de revê-los continuamente e, se necessário, reescrevê-los. Moldurados na página impressa, devem conduzir o leitor à experiência da mínima atenção: palavras servindo de rio à cadência das imagens. De outro modo, resta a quadratura. Os livros de poemas continuarão nas estantes à maneira dos quadros pintados em série, retratando o bucolismo das paisagens do campo. Pendurados nas salas dos apartamentos, servem de janela para um vazio não nomeado, que os olhos se contentam em preencher com um horizonte engessado.

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