São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Riscos do pensamento único

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Banqueiros e empresários do mundo inteiro, reunidos em Davos, na Suíça, constituem uma espécie de Senado da economia mundial, mas um Senado aristocrático, cujos membros não são eleitos e representam mais o poder econômico do que as exigências populares.
As idéias expressas nessas reuniões têm mais peso do que as decisões de muitos parlamentos, pois se traduzem em decisões de investimento e criam um clima de confiança ou desconfiança em relação às economias nacionais. Mas o mais importante é que elas manifestam a disposição quase unânime dos dirigentes econômicos em dar seu apoio ao que se chama na França de "pensamento único". Como não se mostrar surpreso diante dessa unanimidade, em face da qual não observamos senão uma grande diversidade e frequentemente uma grande confusão nas posições dos governos e partidos políticos? Esse pensamento único repousa sobre três princípios.
O primeiro, o menos contestável, é que o mundo entrou numa longa fase de crescimento ou, como dizem os economistas, numa fase ascendente de um novo ciclo de Kondratieff, definido pela expansão de novas tecnologias que dão nascimento a uma sociedade informatizada.
O segundo, não menos importante, é a globalização da economia, o que significa a impossibilidade de as empresas e os governos seguirem outra lógica que não a do mercado mundial. Esse preceito adverte aos velhos países industriais, particularmente os europeus, que seu futuro não está garantido, que seu avanço tecnológico e econômico pode desaparecer num piscar de olhos e que não existe mais fronteiras entre o Terceiro Mundo e os países liberais já industrializados, chamados em geral de Primeiro Mundo. Ao contrário, ele inspira confiança aos novos países industriais, às economias emergentes que nutrem esperanças de alcançar rapidamente os países ricos, como é o caso da Coréia, de Taiwan, do Chile e outros países.
A terceira idéia é que, para atingir o desenvolvimento, é preciso aumentar os investimentos, suprimir os obstáculos ao livre-comércio e à concorrência e libertar a economia das intervenções políticas e administrativas que obedecem a uma lógica diversa, cujos entraves barram o crescimento racional da economia.
Podemos chamar esse pensamento de "liberal", já que ele propõe o mínimo de interferência do Estado nas decisões dos agentes econômicos. A força desse pensamento e desse programa de ação está em seu pendor para libertar o mundo de sistemas de intervenção administrativa que por quase toda parte degradou-se em burocracia, em corporativismo, em defesa de direitos adquiridos.
Num primeiro momento, somos tentados a reconhecer a necessidade de uma grande limpeza liberal que elimine os obstáculos às mudanças econômicas. No Japão, os próprios órgãos oficiais criticam a organização das empresas japonesas por serem demasiadamente rígidas e autoritárias, e em países como a França ou o Uruguai, todos são testemunhas do obstáculo ao crescimento imposto por um sistema de negociações sociais gerado e garantido pelo Estado, que protege os direitos adquiridos de maneira mais eficaz do que cria oportunidades para as novas gerações.
Esse pensamento único, porém, definido pelo vínculo necessário entre seus três princípios básicos, é mais ideológico que positivo; a imagem um tanto deformada que ele reflete da situação pode conduzir a graves crises sociais, políticas e principalmente econômicas.
Fragilidade particularmente evidente em países cuja unidade nacional é tênue e as desigualdades sociais são muito grandes, como é o caso de vários países latino-americanos, inclusive o Brasil, apesar da força de sua tradição estatal. Por razões diversas, tal fragilidade é perigosa também nos velhos países industriais de tendência social-democrata, onde os direitos adquiridos são capazes de bloquear todas as transformações necessárias, se não forem convidados a participar das negociações políticas sobre a introdução de novos métodos de gestão.
Na verdade, existem poucos países que se dão ao luxo seguir uma política puramente liberal. A maioria dos novos países industriais, sobretudo na Ásia, não são exclusivamente liberais; seu regime associa o liberalismo econômico a um nacionalismo muitas vezes autoritário, do qual a China é o exemplo extremo. E podemos lembrar ainda que mesmo os Estados Unidos elegeram Clinton, e não Bush, na esperança de que o democrata criasse um Welfare State do tipo europeu.
Somos forçados a concluir, portanto, que esse pensamento único tem uma função precisa e importante, embora limitada. Seu objetivo é eliminar todas as formas decadentes e desgastadas dos chamados Estados de mobilização que tiveram papel de destaque na evolução do pós-guerra, tanto na América Latina quanto na Europa Ocidental ou na Europa Oriental comunista. Contudo, seu alcance restringe-se a essa função crítica; ele corresponde somente a uma fase de transição e, por isso, corre o risco de não acompanhar o atual ritmo de mudanças da sociedade.
O importante, nos dias de hoje, é sair dessa transição liberal, e não ingressar nela. Se é verdade que muitos países ainda têm de se livrar de políticas pré-liberais ou mesmo antiliberais, é ainda mais urgente diminuir as desigualdades sociais que cresceram assustadoramente, sobretudo nos antigos países comunistas; o problema agora é lutar contra a extrema pobreza, conter o avanço da indústria do crime, do tráfico de drogas e de qualquer tipo de máfia. Restabelecer o controle do Estado sobre as atividades produtivas e lutar contra a extrema desigualdade de rendas, responsável pela fuga de capitais e a miséria de parte da população, é indispensável para transformar a liberdade econômica em desenvolvimento, e não em ruptura social.
É bom lembrar: o que chamamos hoje de globalização era chamado, há cerca de um século atrás, de imperialismo. Este conduziu a rupturas sociais e políticas que disseminaram regimes despóticos e, mais cedo ou mais tarde, paralisaram as economias submetidas ao poder totalitário.
Será que desejamos ver o próximo século nascer sob a égide de conflitos cuja natureza nos legaria uma nova geração de regimes autoritários? A dificuldade hoje gira em torno da fragilidade das forças tendentes a criar um novo controle social da economia. O caminho é estreito entre um intervencionismo estatal que se tornou um obstáculo à modernização e um liberalismo arrogante que nos reserva inúmeras catástrofes, das quais a crise mexicana ou a desintegração política da Colômbia nos fornecem apenas os primeiros e dramáticos exemplos no continente.
Devemos consagrar nossas reflexões e nossos debates à busca de políticas pós-liberais, favoráveis à inovação técnica e econômica, e ao mesmo tempo travar uma luta eficaz contra a pobreza e a exclusão. O primeiro passo nessa direção, talvez o mais importante, consiste em reconhecer (como fez o Banco Mundial) a necessidade de levar a termo não apenas a liberdade de comércio, mas um desenvolvimento de longo alcance que exija reformas sociais e ações políticas tanto quanto a abertura das economias nacionais.

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