São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 1996
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Europa pode adotar o real

JOÃO SAYAD

Os países da Europa decidiram em dezembro de 1991 ter uma moeda única. A rigor, não temos nada com isso, mas uma viagem aos problemas dos outros é excelente para conhecer os nossos.
A moeda única é uma forma ideal de integrar mercados. A economia brasileira constitui-se num mercado único porque todos os Estados da Federação usam o real.
Indústrias, lojas e trabalhadores fazem compras e vendas entre São Paulo e Rio ou entre Sergipe e Rio Grande do Sul levando em conta apenas as diferenças de preço dos produtos.
Por exemplo, se São Paulo tivesse uma moeda e o Rio outra, as transações entre os dois Estados ainda ocorreriam, mas compradores e vendedores teriam de levar em conta as variações da taxa de câmbio entre Rio e São Paulo e as diferentes regulamentações bancárias dos dois Estados.
Poderia acontecer que um frango estivesse mais barato no Rio do que em São Paulo, mas só pudesse ser vendido à vista, porque o governo do Rio estava limitando o crédito ao consumidor.
E em São Paulo, apesar de o frango estar mais caro, pudesse ser comprado a prazo com taxas de juros mais baixas. O Rio poderia ter uma inflação muito baixa e São Paulo ter uma inflação muito alta e crescente, sofrendo um plano de estabilização por ano.
Com moeda única, nada disso acontece. Rio e São Paulo usam reais, a inflação afeta os dois Estados igualmente e os sistemas bancários obedecem às mesmas regras.
Os diversos países da Europa querem ter uma moeda única para ficar na mesma situação dos diversos Estados brasileiros, com Banco Central único e política monetária única.
É isto que a Comunidade Econômica Européia pretende conseguir desde a reunião de Maastricht, em 1991.
Os países da Europa estabeleceram regras de entrada para que pudessem adotar a moeda única: só podem adotar a moeda européia, batizada de Euro, os países que tiverem déficit público menor do que 3% o PIB e dívida interna inferior a 60% do PIB.
Ou seja, o governo não pode estar tomando dinheiro emprestado no mercado em volumes maiores do que 3% do PIB -não pode ter déficit- e a soma do dinheiro que já tomou emprestado no passado não pode ser maior do que 60% do PIB.
Além disso, o país que quiser adotar a moeda única não pode ter desvalorizado a sua taxa cambial nos últimos dois anos.
As condições impostas para adotar a moeda única são típicas do pensamento contemporâneo de que déficit causa instabilidade e inflação.
A Alemanha, 72 anos depois da sua famosa hiperinflação, permanece horrorizada com qualquer tipo de inflação e tem posição absolutamente rígida sobre os critérios de estabilidade.
Não quer abandonar o marco alemão, a moeda nacional estável, e entrar numa aventura européia de instabilidade.
Mas acredita que uma moeda européia única fortalecerá sua posição na Europa, particularmente na Europa Oriental, e estabelecerá uma ordem e estabilidades alemãs na Europa por meio de uma moeda supranacional.
Para a França, a moeda única representa uma forma de controlar o poder alemão na Europa por meio de uma moeda supranacional. A Inglaterra não quer fazer parte da união monetária e pretende manter a libra como moeda nacional. Coisas da Europa.
O que é muito interessante, e tem até certo caráter tropical, são os dados de déficit e endividamento dos países europeus, conforme mostra a tabela.
Em 1995, apenas três dos 15 países europeus tiveram déficit operacional menor do que 3%: Luxemburgo, Irlanda e Alemanha.
Na média, o déficit operacional dos países europeus é de 4,7%. Dos 15 países europeus, apenas quatro têm endividamento inferior a 60% do PIB: Inglaterra, Finlândia (59,8%), França, Alemanha e Luxemburgo. Na média, os países europeus têm endividamento público de 71% do PIB.
Todos os signatários do acordo de Maastricht prometem reduções significativas do déficit e do endividamento para 1996 e 1997. Entretanto, só a Irlanda é levada a sério pelos signatários do acordo, pois tem de fato reduzido muito rapidamente o endividamento.
Os dados europeus suscitam muitas perguntas.
a) Seriam todos mal-intencionados, anunciando que querem uma moeda única nos fóruns diplomáticos e não a querendo de fato?
b) Por que insistem nesses critérios se as economias européias têm tido inflação muito baixa nos anos atuais, ainda que não obedeçam aos critérios de baixo déficit público e baixo endividamento?
c) Será que os alemães também praticam "einen grossen sacanagem", como o ministro Roberto Campos escreveu em recente artigo de domingo neste jornal?
d) O déficit público brasileiro não parece assustador. O Brasil pode abandonar o real, usar a moeda européia e entrar no Primeiro Mundo como tantos brasileiros sonham?
Tivemos um déficit operacional pequeno para padrões europeus em 1994 e nosso endividamento é de deixar ingleses, franceses e alemães com água na boca -16% do PIB.
e) Ou será que a estabilidade da moeda depende de outras coisas?
O objetivo de viajar para lugares estranhos é conhecer o lugar de onde partimos. Uma viagem à Europa não é propriamente uma viagem a lugar estranho.
Ao contrário, para brasileiros e latino-americanos é uma viagem às nossas origens, à terra de nossos avós. E parece que é de lá que herdamos uma visão muito rígida das coisas e um discurso contraditório.

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