São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 1996
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Águas de fevereiro nos levam ao Carnaval

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

6h30 - Telefonam da empresa de táxis: não há carros. Como, se encomendei na véspera? Não há carro, repete a mulher, monótona, cansada. Ouço a chuva caindo forte no jardim e pergunto: Mas não é chuva? Vocês então não trabalham em dia de chuva?
7h - O ônibus que levaria as meninas à escola não passou. Prometo levá-las no meu táxi, se encontrar um táxi na rua. Olho pela janela e vejo a correnteza descer o Jardim Botânico, paralela ao rio dos Macacos. Não há como sair. Nem como achar táxi.
8h - Parte meu avião para Brasília. E agora? As rádios dizem que está tudo alagado e aconselham a não sair de casa.
9h - Há um outro avião às 11h45. Vou à luta com duas malas à tiracolo. Saio de casa e chego à primeira esquina. Um grupo me detém. Não adianta avançar: não passa nada. Observo que os carros voltam para o ponto de onde parti. Ainda chove um pouco. Os que se arriscaram estão molhados até a coxa. Um deles lembra que já foi pior em 76, quando a água chegou ao peito. Volto desanimado.
9h15 - No caminho de casa, um senhor com as calças arregaçadas diz que lamenta minha volta. Hoje era dia de votação importante, a Previdência, diz ele. Em seguida, mais próximo: Sou talvez o único vizinho que ouve a "Voz do Brasil". Olho para ele com a admiração que merece e entro de novo em casa.
10h30 - A rádio continua anunciando o apocalipse. Estimulado pela família, volto à luta. Recoloco as malas no ombro e vou tentar agora chegar a São Paulo, de onde parte um vôo às 16h, minha última chance de chegar a tempo.
10h45 - Chego à esquina da Jardim Botânico. Há caminhões da Globo e um verdadeiro rio descendo a rua. A pracinha que seria inaugurada dentro de 48 horas submergiu. O pior é que ainda havia lá uma faixa: "Obrigado deputado, agora a praça é nossa".
Prometi secretamente jamais me meter em construção de pracinhas. Mas o impasse continuava: a água dava no joelho, era fascinante vê-la correr no sentido contrário dos ônibus parados ao longo de vários quilômetros.
A paisagem da rua, cheia de gente descalça tinha uma certa alegria de criança diante da enchente. Como sair dali, sem chegar encharcado a Brasília?
11h - Dei a volta, ganhei outra rua, a Lopes Quintas, rua do poeta Vinícius de Moraes, e finalmente escapei da correnteza. Meu destino era caminhar com a mala nas costas até que houvesse algo se mexendo. Caminhava no meio da rua, entre ônibus e carros, alguns danificados pela água.
11h30 - Avancei quase um quilômetro na Jardim Botânico. Sentia pelos olhares que as pessoas estavam furiosas com as autoridades. E de certa maneira era uma delas, mas trazia duas malas nas costas, estava sofrendo como todo mundo, de forma que era possível avançar, ouvindo aqui e ali as reclamações populares.
Chegou um momento decisivo. Se continuasse andando com aquele peso, não conseguiria avançar muito. Nada se mexia. O que fazer? Alguém deu a idéia: Tenta a Lagoa, quem sabe.
11h45 - Tento a Lagoa, mas, na pista paralela, antes de chegar ao espelho d'água, passa um único ônibus escolar, no sentido que me interessava. O motorista me vê e pergunta com a mão direita se quero uma carona. Se quero uma carona? Pulei no ônibus escolar vazio e ele me contou que estava tentando sair dali desde as 5h30 e que não conseguiu pegar nenhuma criança. Melhor assim: não haveria aulas mesmo.
12h30 - Depois de algumas peripécias e trechos na contramão estacionamos o ônibus num posto de gasolina. Meu salvador tinha de ir embora, agradeci. Ele fez sugestões técnicas para salvar a Lagoa e pediu minha ajuda. Nesse momento surge um táxi.
Com a ajuda desse bravo táxi alcancei o Santos Dumont, consegui o avião das 13h e só faltava agora fazer o percurso até Cumbica, para completar a última fase.
17h30 - Desembarco em Brasília, num lindo crepúsculo. Joguei as malas no táxi e fui direto. Entro correndo no plenário e alguém me pede para falar sobre nudismo. Agora, não. Tenho de marcar presença. Marco minha presença e sento. O relator lê seu relatório. Não acontece mais nada. O relator tem a voz parecida com o homem que dubla Woody Allen nos filmes de TV. Tenho a impressão de que vai abandonar aqueles tópicos da Previdência:
- Agora vou passar da questão do tempo de serviço e falar um pouco sobre a mãe judia, OK?
18h40 - Telefonam do gabinete. A mesa informa que não haverá painel, nem quarta nem quinta. Tradução: Podem voltar todos para suas casas, a partir de agora.
19h - Ligo para o Rio e pergunto: Ainda chove? Qual a previsão?
19h30 - Já que corri tanto para chegar aqui, deixe-me dar uma olhada nos papéis.
Há cinco telegramas, todos me cumprimentando pelo aniversário. Ah, é isso? Tinha me esquecido do aniversário...
Realmente, foi inoportuno nascer em fevereiro. Chovia muito na minha cidade. Meu pai tinha de sair de casa de canoa para comprar comida.
Na mesa há também um embrulho verde. Garrafas. No cartão, uma advertência do deputado Wilson Campos para que caia no frevo com moderação.
Foi aí que me dei conta de que estava começando o Carnaval. Fevereiro é um mês curto, você nasce e quando menos espera...

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