São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 1996
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Faltou agilidade na cobertura da enchente

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA FOLHA

Deus certamente é brasileiro. Depois de uma semana de tragédias e enchentes, bastam algumas réstias de sol para que o Carnaval aconteça como se nada houvera. E contribui para que a tragédia seja mais uma vez nuançada. Após alguns dias de convivência difícil, as imagens programadas da alegria geral, simbolizada pela hiperexibição do rebolado, pela agilidade de corpos se entregando ao transe da festa de Momo venceu. Reina inconteste na TV.
Os telejornais capricharam na denúncia do improviso e do descaso do poder público no socorro às vítimas das enchentes no Rio de Janeiro. As imagens contundentes do "Jornal Nacional" escandalizaram o mundo via CNN.
Mas o improviso brasileiro vai muito além do poder público. Está presente nos carnavalescos, que terminam seus carros alegóricos a poucas horas do desfile, e nos canais de televisão, que, apesar da enchente nossa de cada dia, ainda são muito tímidos na cobertura.
No ano passado, diante do baile do SBT, o "Globo Repórter" fez um especial sobre as enchentes em São Paulo. O programa compensou a falta de agilidade da emissora no calor da hora, adotando um raro e bem vindo tom analítico. Mas um ano depois, a falta de agilidade perdura.
Em dezembro, Maurício Kubrusly cobriu a grande enchente em São Paulo sempre sobre a mesma ponte do Rio Tietê. Como se as imagens daquele único ponto fossem capazes de romper o isolamento que de repente suspendeu o movimento da metrópole nervosa, disseminando a sensação de que permanecemos sempre sob a ameaça das trevas.
A cobertura do caos carioca foi mais sofisticada. Contando com imagens feitas de helicópteros, foi possível oferecer ao público o espetáculo em dimensões de outra forma inacessíveis ao olho humano. Mas as imagens ficaram restritas ao horário do noticiário.
Durante o dia inteiro de aflição, trânsito parado, telefones cortados, a televisão perdeu a oportunidade de prestar o grande serviço de informar e orientar a população. E em certa medida corroborou com o descaso das tais autoridades.
Não faltaram repórteres afirmando que o povo que vivia nas encostas estava ciente do perigo que corria. Como se a tragédia fosse responsabilidade dos despossuídos que, por opção, tivessem escolhido o morro.
Também pouco se falou do maltrato dispensado pela polícia às vítimas que no desespero protestavam contra a falta de socorro.
Na cobertura dos acontecimentos que se seguiram à chuva forte, foi possível vislumbrar fragmentos de cassetetes que castigaram ainda mais as vítimas das enchentes. As enchentes às vésperas do carnaval salientaram o fantasma da desagregação social.
Um poder público que tropeça na incapacidade de gerar algum senso de comunidade se alia a uma televisão despreparada para prestar, com radicalismo, a solidariedade que o telespectador espera.

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