São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 1996
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Ministro sinistro

DARCY RIBEIRO

Temos um ministro da Justiça que é um perigo público. Boa estampa, boa fala, escrita inteligível, ele pode engabelar todo mundo. Sua tese agora é que devemos abrir o debate sobre nossas fronteiras a quem queira discuti-las por se achar prejudicado. Imaginem a gritaria que vai dar nos 15 mil quilômetros que temos de fronteira viva com a América Hispânica?
Para começar, o ministro já abriu o debate sobre as terras dos índios com reservas demarcadas. Vamos ver pipocar ações por todo o Brasil de vizinhos fazendeiros que querem alargar sua fronteira sobre as terras dos índios. O mesmo ocorrerá onde qualquer pessoa possa alegar algum direito sobre elas. Muitos tomarão a iniciativa de invadir o que é seu putativamente por ato do ministro até que a Justiça decida.
O ministro mexe, sem saber, com o que há de mais vetusto no direito brasileiro. A Carta Real de 1620 manda demarcar sesmarias sem afetar as terras ocupadas pelos índios "como naturais senhores delas". Todas as Constituições brasileiras reconheceram esse direito elementar dos índios, que é também o fundamento da dignidade do povo brasileiro como invasor que é do território que fizemos nosso.
Os séculos correram sob essa legislação, mas o que prevaleceu sempre foi a Bula Papal de 1493, que dava aos europeus a propriedade das terras e dos índios em que pusesse o pé e a mão. Elas seriam suas e de seus descendentes até o fim do mundo.
Aqui e ali Rondon fez demarcar áreas para os índios terem onde andar e morrer, tão exíguas que tiveram eles de abandonar seus modos de vida baseados na caça, na pesca e na coleta, únicos que sabiam. O efeito foi um sofrimento indizível, como se pode ver com os índios guaranis do sul de Mato Grosso, cujos jovens se suicidam às dezenas.
Nas últimas décadas, a pressão da opinião pública internacional e nacional mudou a situação. Algumas instituições estrangeiras até pagaram a demarcação de reservas indígenas, que sem sua ajuda teriam ficado ao abandono. Reconhece-se, assim, direitos que os índios reclamam há 500 anos ao longo dos quais o que prevaleceu foi o extermínio e a espoliação.
Os critérios que se tenta seguir agora são os de dar aos índios território suficiente para que eles continuem com seu estilo de vida. Simultaneamente, se destina a usos futuros ou à preservação ecológica matas e campos que, entregues às chicanas do sistema fundiário brasileiro, seriam rapidamente griladas, queimadas e degradadas.
A primeira reserva assim constituída foi o Parque Indígena do Xingu. Consegui de Getúlio Vargas que se destinasse aquela área às diversas tribos que lá viviam, como única alternativa recomendável. A outra alternativa seria entregá-las aos fazendeiros que só sabia derrubar e queimar as matas para aumentar suas incomensuráveis pastagens.
Reconheceu-se que os xinguanos, tendo preservado aquelas matas desde sempre, seriam os mais capazes de defendê-las para que os netos de nossos netos, lá pelo ano 5000, pudessem ver uma mostra da natureza brasileira original.
Afinal as reservas indígenas constituem parcela mínima desse país imenso que tomamos deles contra a lei, mas com o apoio do aparato judicial e policial. Ultimamente, até um ministro de Fernando Henrique entra no bando dos espoliadores. Ministro sinistro que devia recordar seu Estado natal, o Rio Grande do Sul, onde, por inspiração de governos positivistas, primeiro se preservou as terras de seus índios, reconhecendo seu direito a elas.
Agora o ministro, sentado em sua poltrona fofa, desencadeia a intranquilidade e o sofrimento em todas as aldeias indígenas e reacende uma luta secular, em nome de um direito hipotético que desconhece direitos maiores, para reimplantar a chicana e a grilagem contra os poucos índios que sobreviveram até nossos dias.

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