São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 1996
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Na solidão do poder

O presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou no seu discurso no Colégio do México, cuja íntegra a Folha publicou na edição de ontem, talvez o mais abrangente e ambicioso de seus pronunciamentos desde a posse. E, se ele declarava há pouco tempo achar divertido governar, suas palavras mais recentes revelam outro estado de espírito. Governar é quase impossível.
O discurso é um acerto de contas com o marxismo, com a teoria da dependência e com a agenda neoliberal, não por acaso os três mais marcantes paradigmas da carreira do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Mas o acerto de contas é feito não pelo acadêmico e sim pelo homem de ação que só vê sentido na ação coletiva. Quem fala é o político que conseguiu chegar ao poder máximo de seu país.
E lá chegando, como tantos outros antes, agora talvez até com mais motivos, constatou a solidão do poder que, na prática, se não é mínima é decerto muito menor do que se imagina.
Contra o marxismo, que sempre imaginou o mundo como uma contradição entre capital e trabalho, FHC constata uma outra realidade: os trabalhadores organizados tornam-se capitalistas, titulares de gigantescos fundos de pensão. E os capitais, pulverizados, especulativos e infinitamente móveis, desenham no horizonte um "tribunal imaterial" que julga e pode condenar com enorme rapidez os vários governos nacionais, destruindo suas moedas e bloqueando o desenvolvimento econômico.
Contra a teoria da dependência, que afinal de contas buscava ainda alguma lógica na inserção internacional das economias periféricas, FHC reconhece agora que nem mesmo a dependência está garantida, dado o caráter predatório, cínico, individualista e niilista das elites cujo alheamento ético "conspira contra a própria noção de identidade nacional".
Afinal, até mesmo a dependência poderia ser um modo de desenvolvimento, com alguma racionalidade, ao menos vestígios de ordem e progresso. Mas elites irresponsáveis não são entreguistas, são suicidas.
Finalmente, o neoliberalismo é também rejeitado pelo presidente. Em primeiro lugar, porque ainda é grande a distância entre o discurso da liberalização, característica maior da globalização, e as práticas comerciais desleais. Nas suas próprias palavras: "Há uma clara contradição entre o discurso globalizante e a prática, cuja regulação dos limites é ditada por negociações diplomáticas".
Nem o marxismo ou a teoria do desenvolvimento periférico da juventude, nem o neoliberalismo que é a marca dos anos mais recentes, FHC reconhece que está tateando no escuro de uma época imprevisível. Não há classes sociais portadoras de uma mensagem ou de estratégias emancipadoras. O Estado escapa apenas marginalmente aos ditames desse tribunal imaterial comandado pelos mercados financeiros globalizados.
É o próprio rei constatando que os reis estão nus. Nem a economia, nem a sociologia, nem o marxismo, nem o liberalismo ou a social-democracia, nem os trabalhadores, nem a elite, nada ou ninguém pode arvorar a condição de agente social da construção do futuro.
O presidente do Brasil termina com um apelo. Utopias parciais! Ética de solidariedade! Volta aos valores essenciais do humanismo! Razão sábia, tolerância, espírito comunitário, responsabilidade!
Dissecada a realidade, os apelos ecoam solitariamente nos mármores dos palácios, à espera de uma época e de uma sociedade mais propícias.

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