São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 1996
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Só para professores

OTAVIO FRIAS FILHO

Figueiredo só ficava à vontade na caserna, era entre os colegas de farda que ele dizia o que não devia, "exercitando seu estilo franco", como descreviam os jornais na época, hoje merecidamente esquecido. Algo assim acontece com FHC em ambientes universitários: é ali que o presidente-intelectual saboreia melhor os seus triunfos mundanos, enquanto é espicaçado pela antiga vaidade de professor.
Essa combinação milagrosa, capaz de fazer um governante falar a verdade, operou seus prodígios novamente anteontem, no Colégio do México, onde FHC deu uma conferência para intelectuais nativos, alunos, como todos nós, no Curso Rápido de Sociologia Neoliberal, embora em segunda época. Salvo engano, desde a campanha eleitoral foi a primeira vez que o presidente admitiu várias coisas em público.
Ele admitiu, por exemplo, que a globalização não é escolha, mas destino; que as consequências sociais são devastadoras, embora possam ser minoradas; que o raio de ação dos governos é mais estreito que nunca; que o desaparecimento do socialismo e da classe operária destruiu um sistema de solidariedade, sem que haja "agentes sociais" à vista capazes de organizar um outro.
Governantes precisam ser otimistas, FHC chegou a saudar a nossa época como uma nova Renascença (sem que se perceba bem o que uma coisa tem a ver com a outra), matizando cada uma dessas admissões com ressalvas e contrapartidas, como as famosas "políticas compensatórias" de que eles tanto falam e que eles sabem que nunca vão sair do papel, exatamente por serem "compensatórias".
O que existe de perverso nas confissões presidenciais é que elas não diferem do diagnóstico apresentado por intelectuais que teimam em continuar de esquerda. Leia, por exemplo, o depoimento do professor Paulo Arantes na revista mais sisuda do mundo, a do PT, publicado no fim do ano, onde ele diz que FHC não está fazendo nada porque não há nada a fazer. O cerne é o mesmo.
O desaparecimento de qualquer idéia política -pois idéia pressupõe controvérsia entre elas- é tão completo que as divergências, mesmo se herdadas intactas da época da utopia social, agora se resumem a uma questão de temperamento. Paulo Arantes é um pessimista amargo; FHC, um deslumbrado; José Arthur Giannotti, disposto a apoiar o governo até se ele declarar guerra à Bolívia, um entusiasta.
Talvez por isso o domínio do humoral, das propensões inatas, das escolhas mais ou menos irracionais, tenha adquirido tanto relevo: religião, consumo e homossexualismo são os assuntos da moda; a possibilidade de optar foi expulsa para as repetições mecânicas do mercado ou para a idiossincrasia ultrapessoal. Não foi só o raio de ação do Estado, mas o da razão, que se estreitou de repente.
Não deixa de ser uma grande vitória que o sistema emergente -globalização, neoliberalismo, tanto faz o nome- tenha imposto a seus críticos o ônus do pessimismo, quando antes era o contrário. Mas o discurso de FHC, com a sua lucidez paradoxal, leva a uma dúvida, se não deveríamos renovar a nomenclatura também aqui, para falar em otimismo derrotista ou pessimismo feliz.

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