São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 1996
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Desenvolvimento e defesa das terras indígenas

JOÃO ALBERTO CAPIBERIBE

O decreto federal 1.775, assinado em 8 de janeiro de 1996, constitui uma ameaça aos direitos conquistados pelos povos indígenas.
Segundo o decreto, está garantido a Estados, municípios e demais interessados o princípio do "contraditório", por meio do qual poderão reivindicar a posse de terras indígenas cujas demarcações não foram ainda homologadas.
Isso será possível mediante apresentação de razões, provas, títulos dominiais, além de vários outros elementos, inclusive testemunhas, para a comprovação de que são proprietários da área objeto de demarcação.
Mais do que rever o processo demarcatório, o decreto 1.775 coloca novamente em discussão a relação que a sociedade nacional pretende estabelecer com os povos indígenas. E dado que 98% das áreas estão localizadas na Amazônia, fica a dúvida sobre o destino reservado para essa rica e imensa região do país.
A alegação dada pelas autoridades federais é a de que o decreto 22/91, que até então garantia a demarcação das áreas, poderia ser contestado juridicamente ao não permitir o princípio do "contraditório".
Entretanto o decreto 1.775 incorre numa inconstitucionalidade, na medida em que num processo de demarcação não há litigantes. Se alguém, de boa fé, usou a área indígena e ali realizou benfeitorias, poderá pleitear indenizações em processo especial, administrativo ou judicial, e nunca num processo de demarcação, que tem a finalidade específica de fixar a extensão de uma área indígena.
Ademais, o decreto 1.775 fere o princípio da irretroatividade ao permitir a revisão das demarcações já realizadas de acordo com os decretos anteriormente vigentes. A sua aplicação, portanto, acarretará mais um retrocesso nas demarcações, já ilegalmente atrasadas, além de acarretar também o desperdício de recursos públicos.
Para além da discussão jurídica, a questão de fundo refere-se à extensão das áreas destinadas aos povos indígenas. A idéia de que os índios seriam latifundiários é argumento corrente daqueles que se opõem à atual proposta de demarcação.
Ao defender a não-revisão das demarcações, tenho em mente que boa parte dos grupos indígenas, não sendo sedentários, vivem da caça e da coleta; logo, necessitam de áreas extensas. E é importante informar que a posse da terra pelos índios é coletiva, sendo impossibilitada sua venda. Não é possível, portanto, tratá-los como latifundiários.
Além disso, a extensão da terra demarcada deve levar em consideração o futuro aumento populacional dos grupos. Assim, mais do que assentar alguns milhares de índios, o que está em jogo é a sobrevivência e desenvolvimento dessas etnias.
A demarcação das áreas garante também a proteção dos índios contra as constantes ameaças dos que exploram indiscriminadamente a região. Tendo a extração mineral e a exploração da madeira como vocações naturais, a Amazônia sofreu violentos processos de desenvolvimento que atingiram as populações indígenas e o meio ambiente.
É de fundamental importância que o governo federal mantenha a atual demarcação com a finalidade de preservar para o futuro tanto a diversidade cultural quanto a biodiversidade, até porque as populações tradicionais, principalmente os índios, mostraram-se na maioria das vezes mais aptos na proteção da Amazônia.
O atual governo do Amapá foi eleito com o compromisso de viabilizar o desenvolvimento do Estado, garantindo, entre outras coisas, a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas.
Compreendo que, para a construção de um país democrático, é de crucial importância o respeito aos grupos étnicos. Nesse sentido nossos esforços somam-se àqueles que historicamente lutam pelos direitos dos índios, em especial pela posse das terras que lhes é originariamente de direito.

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