São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O contraditório como direito

JOSÉ SARNEY FILHO

Um dos esteios da democracia é a liberdade de coexistirem a diversidade de opiniões e a pluralidade de interesses. A dialética que se processa no seio dessa diversidade e pluralidade é o motor que impulsiona a sociedade. As divergências contribuem para o aperfeiçoamento das idéias e para a solidez das instituições. Enganam-se aqueles que entendem segurança como consequência da unanimidade: como já se disse, a unanimidade é burra.
Se há entre esses interesses uma oposição que não se resolva por sua própria dinâmica, os seus titulares recorrem às instituições destinadas a avaliar o problema e lhe dar solução. Diante do árbitro, os titulares dos interesses que se opõem devem ter ampla liberdade de expressão. Isso é o contraditório.
Quando, porém, algum interesse particular se sente atingido pela ação do próprio Estado, é fundamental que ao seu titular se garanta, também, a possibilidade de defesa diante da própria administração. Apenas os Estados autoritários, que negam o direito à diversidade de opiniões e pluralidade de interesses, negam o contraditório perante os órgãos estatais, porque as razões ditas "de Estado" a tudo e a todos se sobrepõem.
Essa foi a motivação que levou os constituintes de 1988, entre os quais tive o orgulho de me incluir, a redigirem o inciso 55 do artigo quinto da Carta, onde se garante aos litigantes, tanto em processo judicial quanto em processo administrativo, o direito ao contraditório. Essa é uma garantia essencial à democracia, permitindo uma composição justa de interesses.
Mas a Constituição de 1988 não estabeleceu um mecanismo que possibilitasse aos eventuais prejudicados pelas demarcações o direito de expressarem os seus pontos de vista.
A mesma Constituição que garante o contraditório no processo administrativo contém um capítulo especificamente dedicado aos índios. Por expressa disposição constitucional, aos índios se reconhecem seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Segundo o conceito constitucional, essas terras são aquelas que eles habitam em caráter permanente, as que utilizam para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Ocorre que na demarcação das terras indígenas muitas vezes se atingem interesses de terceiros não-índios. Negar-lhes o direito a expressar suas razões é um artifício autoritário que não se compatibiliza com a democracia.
Por isso o Supremo Tribunal Federal demonstrou estar inclinado a julgar inaplicável o decreto nº 22, o que implicaria a anulação de todas as demarcações feitas desde outubro de 1988.
Portanto foi correta e saudável a providência do presidente da República de editar um novo decreto, que estabeleceu uma oportunidade para a manifestação dos terceiros interessados no próprio procedimento de demarcação das terras indígenas.
Não é correto supor que o acatamento desse princípio básico da democracia -o direito de defesa- implique menoscabar os direitos dos índios. Ao contrário, eliminando em grande parte os questionamentos que até agora se acumulavam, o novo decreto nº 1.775 constitui uma salvaguarda dos direitos indígenas.
Na comissão de minorias e na comissão externa destinada a acompanhar o processo de demarcação das terras indígenas, da Câmara dos Deputados, estaremos fiscalizando as ações do governo para que a Constituição seja cumprida, garantindo os direitos dos índios segundo as regras e prazos do novo decreto.

Texto Anterior: Desenvolvimento e defesa das terras indígenas
Próximo Texto: Sem-terra; Ensino religioso; Comparação; Fechamento da USP; Zona Franca; Análise em falta; Aniversário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.