São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 1996
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Guerra (fiscal) suja

JUAN FRANCISCO CARPENTER; MARCOS RIBEIRO DE BARROS

JUAN FRANCISCO CARPENTER
MARCOS RIBEIRO DE BARROS
Minas Gerais acena à Mercedes Benz com o recolhimento facilitado de ICMS durante oito anos. Secretário de Desenvolvimento Econômico, Científico e Tecnológico de Santa Catarina promete "postergar" a cobrança de ICMS por dez anos sem a cobrança de juros. O Estado da Bahia financia 75% do ICMS sob a forma de empréstimo, para pagamento em até seis anos e com correção monetária reduzida.
O leitor seguramente já se acostumou a essas notícias. Elas fazem parte da já célebre "guerra fiscal" e foram extraídas desta Folha (14.jan.96, páginas 2-6 e 2-7) e da "Gazeta Mercantil" de 05.mai.95.
Dezenas de manchetes semelhantes poderiam ser relacionadas. Por que somos vítimas de mais esta arbitrariedade?
A Constituição da República (art. 155, parágrafo 2º, XII, "g") impõe, obrigatoriamente, a deliberação multilateral dos Estados e do Distrito Federal, na forma regulada por lei complementar, para a concessão e revogação de insenções, benefícios e incentivos fiscais (redução de base de cálculo, crédito presumido, financiamento para pagamento do tributo, ampliação de prazo de recolhimento etc.).
Essa lei complementar (nº 24/75), por seu lado, existe há mais de 20 anos e é responsável pelos conhecidos convênios Confaz. Um desses convênios (nº 38/88), por exemplo, impõe limites estritos para o pagamento de ICMS: os estabelecimentos comerciais devem recolhê-lo, no máximo, até o vigésimo dia do mês seguinte ao fato gerador; os industriais, até o quadragésimo.
Tão grave é a desobediência a essas regras que a própria lei complementar estabelece, como sanções, a presunção de irregularidade de contas junto ao Tribunal de Contas da União e a suspensão do pagamento de cotas relativas ao Fundo de Participação em tributos federais.
Leis e decretos de inúmeros Estados solenemente ignoram todas essas normas. O que fazer?
A palavra está, sobretudo, com todos os -poucos, infelizmente- legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103 da Constituição Federal).
Dentre os "happy few" estão os governadores do Estado e mesas de Assembléias Legislativas. As cabeças dos poderes executivo e legislativo dos Estados que vêm se recusando a entrar no leilão da renúncia fiscal predatória -adotando postura de obediência à ordem constitucional- dispõem, assim, desse valioso instrumento para reforçar ainda mais essa posição.
A guerra fiscal tem sido envolvida por uma rede de equívocos. Há quem vincule sua solução, para variar, à reforma constitucional, a um ICMS federalizado (é o caso da proposta apresentada pelo governo) ou até mesmo à promulgação de lei complementar que discipline os convênios (como ocorre com o projeto do PT). Ora, por que se gasta tanta energia se o remédio já existe?
Há ainda os que envolvem essa guerra em clima de bairrismo: "São Paulo perde recursos para o Rio de Janeiro", por exemplo. Nada disso. Estamos diante, mais uma vez, de um mecanismo impulsionado pelo poder público tendente à concentração de riqueza.
Com a renúncia fiscal sem precedentes, perdem todos os que se socorrem dos serviços públicos (mas quem está ligando para aqueles que, nos dias de hoje, se aventuram nos ônibus, nos hospitais públicos, nas escolas estaduais ou municipais?).
Ganham os empresários, beneficiários do leilão que antecede suas decisões de investimento. Ganham ainda -e talvez isso seja o mais doloroso- os governadores que, sob a alegação divertida de "gestão empresarial do Estado" ou "globalização da economia", sacrificam suas já escassas receitas tributárias em nome de um punhado duvidoso de empregos (em face da avançada informatização dos parques produtivos) a ser devidamente relembrado no próximo palanque.
Em tempo: o Supremo Tribunal Federal, em agosto/95, concedeu medida liminar em ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Procurador Geral da República, sustando os efeitos de legislação paraense concessiva de benefícios fiscais não amparados por convênio Confaz. O acórdão do STF possui mais de 40 páginas claramente sinalizadoras do entendimento da Corte. O que mais falta para brecar a guerra fiscal?

JUAN FRANCISCO CARPENTER, 30, é procurador do Estado de São Paulo em exercício na Procuradoria Fiscal.

MARCOS RIBEIRO DE BARROS, 32, é procurador do Estado de São Paulo em Brasília e diretor do Instituto Paulista de Advocacia Pública.

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