São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 1996
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A incrível estabilidade das nuvens

RUBENS RICUPERO

Na época em que o Banco Nacional era visto como padrão dos bancos mineiros e estes como destinados a dominar o sistema bancário brasileiro, Magalhães Pinto, seu dono, popularizou a frase de que a política era como uma nuvem: cada vez que se olhava, ela tinha mudado de aspecto.
Nesse sentido, pode-se dizer que a economia mundial tem apresentado ultimamente uma notável continuidade na mudança: cada vez que se olha, ela aparece diferente aqui ou lá, mas sua cor fica sempre mais sombria.
Em fins de dezembro, descrevi 1995 nesta coluna como um ano cinzento e medíocre e disse que 1996 não prometia trazer-nos nada de melhor.
Desde então, sempre que olho, descubro na nuvem algo que antes não se percebia tão nitidamente, mas que só escurece ainda mais um horizonte já pouco risonho.
Dois ou três meses atrás, a economia francesa estava em vias de perder fôlego, mas não era claro como hoje que a Alemanha se encaminhasse a uma recessão, conforme constata ao menos um dos seus principais institutos econômicos de pesquisa.
Com mais de 4 milhões de desempregados, a locomotiva da União Européia não parece ter força para arrastar os demais vagões.
A maior surpresa, porém, ficou por conta da economia norte-americana, até então a de melhor desempenho dentre os países industrializados.
De umas semanas para cá, começaram a acumular-se os sinais de que as coisas não andam bem nem nos Estados Unidos.
Índice dos consumidores, índice dos gerentes de compras, taxa de desemprego, todos os medidores apontam para uma sensível desaceleração da economia, a ponto de já começarem a aparecer as especulações sobre o impacto que isso poderá ter sobre as chances de reeleição do presidente Clinton.
Com a terceira locomotiva, a japonesa, também com escasso vapor, é difícil esperar, ao menos por ora, por uma velocidade já não digo comparável à do comboio que os nossos amigos portuguesas chamam de "foguete", mas até de um modesto trem "leiteiro".
Em todos esses casos, existe um traço comum por baixo das diferenças de situações específicas: a relutância das pessoas em consumir, a tendência de poupar para enfrentar dias piores, o temor e a insegurança diante de um futuro incerto e, acima de tudo, o medo do desemprego.
O problema chegou a tal ponto que na França começou-se a adotar uma política ativa para desestimular o excesso de poupança.
As taxas de remuneração das cadernetas estão em níveis baixíssimos, o governo lança planos para seduzir as pessoas a mudar de automóvel, a adquirir a sonhada casa própria, tudo com a esperança de espicaçar a economia com um estímulo que os declinantes gastos governamentais não estão mais em condições de proporcionar.
O que eu tenho a ver com isso, perguntará o leitor brasileiro recém-saído das delícias consumistas do Carnaval e incrédulo de que possa existir sobre a face da terra algum país onde a palavra de ordem seja excitar e não reprimir o consumo.
A resposta é muito simples: a primeira consequência do temor da recessão nos países industrializados é que, em todos eles, os bancos centrais vêm se empenhando numa disputa para cortar mais e mais os juros.
É claro que isso aumenta, em proporção inversa, a atração de aplicadores e especuladores por mercados onde os juros cruzam vertiginosamente a estratosfera, como acontece nestes nossos estrelados céus do cruzeiro do sul.
Daí o esforço do Banco Central para, com taxas e normas restritivas, tentar selecionar a multidão dos capitais estrangeiros que se acotovelam para participar da folia carnavalesca dos juros altos.
Quem diria que, um ano atrás, o problema era impedir o estouro de uma saída de pânico, na qual os fujões ameaçavam carregar consigo não só as fantasias e o cenário, mas a própria pista de dança?
A crise mexicana parece hoje uma lembrança distante, mas a própria volatilidade incandescente do panorama financeiro acentua o que o diretor do FMI, Michel Camdessus, lembrava há pouco: "Em três ocasiões, ao menos, durante os dez últimos anos a economia se viu sacudida pelo peso do superendividamento, pela flutuação aberrante das taxas de câmbio e pelas ondas especulativas".
E acrescentava: "A mais recente, a crise mexicana de 1995 -a quarta!- foi uma formidável revelação dos riscos financeiros da globalização".
No mesmo sentido, o relatório preparatório à próxima Unctad-9 (Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento) observava que as políticas monetárias nacionais passaram a ter imediatas consequências internacionais.
Dava como exemplo, além da crise mexicana, a decisão americana, no início de 1994, de aumentar os juros, desencadeando um colapso nos valores de títulos com perdas mundiais superiores às da crise da Bolsa em 1987.
Em contraste com o avanço obtido no campo do comércio com a criação da OMC (Organização Mundial do Comércio), o relatório nota a ausência de mecanismo correspondente no plano financeiro.
E propõe que se edifique uma estrutura para a efetiva vigilância e a solução de conflitos acerca de questões monetárias e financeiras.
Esse sistema poderia inspirar-se nos princípios do Gatt e da OMC, isto é, não-discriminação e condenação de medidas que confiram vantagens competitivas injustas, assim como o reconhecimento de salvaguardas e tratamento preferencial para os mais vulneráveis.
Dessa forma, qualquer política ou medida unilateral que apenas beneficie um país às expensas de outro, em termos de mercado de capital ou de posição de balanço de pagamentos, poderia ser questionada dentro de um sistema de solução de conflitos capaz de impor sanções, caso necessário.
Os esforços passados para tentar melhorar, sem muito êxito, a coordenação internacional de políticas macroeconômicas, no FMI ou no seio do G-7, mostram a extrema complexidade e dificuldade da tarefa.
Conforme afirma o relatório da Unctad, essas dificuldades não impediram que se conseguisse construir um mecanismo simétrico de vigilância de políticas nacionais no campo do comércio.
Caso se queira, no futuro, reduzir o perigo de destrutivas crises financeiras, como as que se vêm multiplicando recentemente, é preciso completar o sistema de governança global por meio de sua extensão ao último grande componente da globalização, no qual ainda impera uma espécie de "vale-tudo" e de "Estado da natureza": o setor das moedas e das finanças internacionais.

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