São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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O Cruzado e o Real

CELSO PINTO

Dez anos depois de seu fracasso, que lições o Plano Cruzado ainda poderia trazer para o Plano Real?
A primeira e mais óbvia é que não se mistura plano de estabilização com descontrole fiscal e populismo político. No entanto, é preciso ir com certo cuidado no terreno fiscal.
Quem se der ao trabalho de buscar os números, lembrará que o ano do Cruzado, 1986, fechou com um déficit público operacional de 3,6% do PIB.
Ora, o déficit público operacional no ano passado está estimado em 4,95% do PIB. Estaríamos perto do mesmo desastre do Cruzado?
Na verdade, a grande, a enorme diferença entre a conjuntura do Plano Cruzado e a do Plano Real não é, como se viu, uma fantástica austeridade fiscal.
É a aliança entre âncora cambial e abertura do comércio exterior.
Não há como sustentar um plano de estabilização, a médio prazo, sem equilibrar as contas públicas.
Como provou o Plano Real, no entanto, é possível manter a inflação baixa durante algum tempo, apesar do desequilíbrio fiscal, se houver a disciplina da concorrência dos produtos importados e uma situação de balanço de pagamentos que permita usar esta alavanca.
A rigor, o Plano Cruzado não morreu de desequilíbrio fiscal, embora este tenha sido um dos venenos que contaminaram sua saúde. Morreu de balanço de pagamentos, como normalmente acontece.
O Cruzado sofreu da mesma síndrome do Real. Tão logo a inflação despencou, houve um aumento do poder aquisitivo e um forte aquecimento da economia.
Só que, enquanto o Real tinha US$ 40 bilhões de reservas cambiais para gastar, o Brasil, em 86, fechou o ano com US$ 4,6 bilhões em reservas.
Quando o excesso de demanda esbarrou na escassez de oferta interna de produtos, no Plano Cruzado, as importações dispararam, levando a um déficit comercial expressivo, a uma brusca queda de reservas e ao desastre.
No caso do Plano Real, a forte aceleração inicial da economia também provocou um salto nas importações e déficits na balança comercial.
Com o agravante que a crise do México, em dezembro de 1994, provocou uma fuga de investidores externos, acelerando a perda de reservas.
Mesmo assim, havia dólares suficientes para aguentar o baque, alimentar a demanda extra e segurar os preços.
O governo passou pelo teste da aposta geral em uma disparada de preços, no final de 94, e pelas dúvidas que acompanharam a mudança cambial, em março de 95, sempre ajudado por uma montanha de dólares.
É claro que existem inúmeras outras diferenças relevantes entre os dois planos.
Quando a equipe do Cruzado descobriu que a economia havia disparado, não houve consenso, nem apoio político do presidente Sarney, para provocar uma desaceleração e tentar salvar o plano.
Ao contrário, a política monetária continuou frouxa, com taxas de juros reais negativas, enquanto o presidente saudava os sucessos fugazes contra a inflação como a entrada no Éden.
No caso do Real, na ausência de um aperto fiscal extra, o governo aplicou um aperto monetário extra -com o apoio do presidente Fernando Henrique.
Pode-se discutir se a dosagem de juros foi correta e, principalmente, se não deveria ter sido revertida de forma mais rápida e firme.
Pode-se, também, discutir se a política cambial inicial, permitindo uma forte valorização do real, não tornou o país ainda mais vulnerável na área externa, obrigando, portanto, a um ajuste mais duro.
Ninguém discute, contudo, que, se o país continuasse a crescer a 10% ao ano, como acontecia no início de 95, o Real teria tido vida curta.
A tecnologia de passagem dos contratos, inclusive os salários, da inflação alta para a inflação baixa, foi menos sofisticada no Cruzado, quando foi inaugurada a famosa "tablita".
No caso do Real, todos admitem que a operação da URV foi uma engenharia de primeira qualidade e inegável sucesso.
No entanto, também é verdade que a complexidade da URV só foi necessária porque o país havia passado por uma coleção de fracassos, inaugurada pelo Cruzado.
O Plano Cruzado teve um ingrediente único, impossível de repetir: um extraordinário apoio popular, só possível nesta intensidade, provavelmente, uma vez por geração.
Um apoio tão fantástico, que permitiu que o congelamento de preços operasse razoavelmente bem durante meses, em meio a uma economia em disparada.
O Cruzado não acabou porque usou o congelamento e sim porque contrariou a lógica básica da economia.
E porque não pôde usar a abertura comercial externa. Em vez de segurar os preços com importações, teve que laçar boi no pasto.

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