São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Governo e humorismo

ROBERTO CAMPOS

Um amigo meu, homem com bons serviços prestados ao país, comentou, certa vez, que duro, mesmo, era fazer humorismo na Suíça; no Brasil, era sopa: era só ler no Diário Oficial o que o governo estava fazendo... Momento inesquecível: o descobrimento de uma lei universal da vida pública brasileira.
Estou lembrando isto, agora, por conta de Fernando Henrique Cardoso, um sociólogo que admiro, e que, por complicadas voltas do destino, está sentado agora numa cadeira de onde pode fazer alguma coisa a respeito.
A última é a notícia recente de que o presidente do Ibama -o pomposo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais- resolveu mover a maquinaria da Justiça para impedir uns comerciais de televisão em que se mostram macacos tomando refrigerantes.
Isso mesmo, leitor. Macacos tomando refrigerantes! É uma coisa engraçada. Crianças e adultos sempre se divertem com macaquices -com os gestos e cambalhotas desses nossos primos.
Mas esse senhor não deixa por menos o cumprimento do dever. Entende que a Constituição (a mais engraçada do mundo, aliás) veda práticas que coloquem em risco a função ecológica dos animais e, segundo relato da imprensa, o procurador geral do Ibama, tomado de não menor zelo do que o seu chefe, afirma solenemente que "dirigir carro e tomar refrigerante não são funções ecológicas".
Enquanto que outro diretor, não querendo ficar atrás na emulação do presidente do órgão, explica que esses comerciais "estimulam o cidadão a desrespeitar a fauna e a retirar o animal do seu habitat".
Como cidadão normal, desses que fizeram até serviço militar, não consigo imaginar como é que ver na telinha um chimpanzé ou um elefante, emborcando uma garrafa de refrigerante num dia de calor, possa induzir alguém ao complicadíssimo trabalho de ir pegar um dos ditos bichos para submetê-lo a práticas que os ilustres ibamóides consideram não serem "funções ecológicas".
Onde agarrá-los? Sou de Mato Grosso e não conheço macacos com PhD, isto é, com funções ecológicas.
Agora, vamos ao lado sério. O presidente do Ibama e seus zelosos funcionários ganham gordos salários, pagos pelo contribuinte.
Ações na Justiça custam dinheiro. Mobilizam procuradores, juízes, um monte de gente! Será que neste momento em que, por conta do descontrole dos gastos públicos, os empresários estão sofrendo com os mais altos juros do mundo, e o desemprego grassa, não há nada de melhor a fazer com o dinheiro que esses ilustres funcionários públicos estão brincando de jogar fora? Quem vai ressarcir tal desperdício dos dinheiros do Estado?
E há o inato desrespeito pelas liberdades públicas. Parece que o que mais irritou as poderosas autoridades do meio ambiente foi o crime de lesa-majestade de as empresas de publicidade não haverem pedido licença (isso mesmo!) para produzirem o comercial com a bicharada.
Imagine-se o que não fariam na Inglaterra, onde, no zôo de Londres, a macacada participa de um "five o'clock tea", um chá servido com bolinhos e tudo! Que horroroso delito anti-ecológico! Já estou vendo o Itamaraty mobilizado para levar o caso ao Conselho de Segurança da ONU...
Recordo, aliás, entre outras loucuras deste país de Macunaíma -"o herói sem nenhum caráter"- que, há alguns anos, o Ibama foi protagonista de outro espanto: prendeu (crime inafiançável!) um rapazinho modesto que, com uma espingarda de ar comprimido, matou um anu -isso mesmo, esse pássaro preto que é praga.
Isso num país em que o governo reparte com os traficantes o policiamento da Cidade Maravilhosa, ao ponto de prenderem um secretário municipal que, desavisado, se aventurou num terreno perto do aeroporto, e em que, neste Carnaval, só em São Paulo, ocorreram mais de 200 homicídios.
Falo a Fernando Henrique com real amizade. Não deixe o governo continuar a correr solto. Afinal, ele próprio, Fernando Henrique, vive falando (retoricamente, sabemos, mas vamos fazer de conta que não percebemos) na famosa "caneta". Pois aí tem um bom caso para caneta.
Quem indicou para os cargos de confiança esses funcionários do Ibama? E a tentativa de violação dos direitos civis dos cidadãos pagantes de impostos?
E esse ataque grosseiro às liberdades elementares das pessoas? O governo vai deixar como está para ver como fica?
Aí está uma boa oportunidade de começar na prática a reforma do Estado. Um exemplo decidido seria ótimo para a imagem oficial. Estou até ouvindo: "Temos governo!". E isso seria bom para a saúde do Real. Pergunte só ao Malan, que ele confirmará.
Qual o efeito sobre as expectativas? Autoridades que corrigem as besteiras e arbitrariedades da burocracia ganham um bruto respeito do público. E dá para capitalizar sobre ele.
Será bem mais fácil convencer as pessoas de que vamos ter saldo comercial e que as taxas de juros, afinal, não são lá essas coisas, se elefantes e macacos forem deixados em paz.
Um inocente riso da garotada e da turma das novelas não pode fazer mal a ninguém. Nosso povo, afinal, tem o maravilhoso dom de tirar de letra as chateações da irracionalidade em que vive imerso, e com isso, dá um jeito de ir sobrevivendo.
Mas o ridículo faz mal. Na França da monarquia absoluta o povo aguentou durante séculos uma quantidade de incompetências e idiotices oficiais.
Mas quando Maria Antonieta começou a ficar conhecida como "madame déficit", qualquer pessoa que vai a cinema sabe o que aconteceu...
Estou certo de que se Fernando Henrique chamar algumas pessoas de fora do governo -dessas pessoas normais, que têm de trabalhar e produzir para ganhar a vida e pagar impostos- elas poderão contar-lhe muitas outras histórias da burocracia oficial.
Algumas apenas engraçadas, outras de arrepiar. Mas todas levando a uma mesma conclusão. O Estado tem de começar já a ser consertado.
E não apenas de cima para baixo, com grandes projetos seridos dorés com maionese sociológica. Também nos pequenos pormenores, com bom senso e caneta.

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