São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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A conquista do ilimitado

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A riqueza de "Possessões Maravilhosas", livro de Stephen Greenblatt, professor de humanidades em Berkeley e diretor de importante jornal acadêmico ("Representations", que já passou do nº 50), está em estudar a descoberta da América, integrando a leitura política e econômica, mais compreensível para nós, com a atenção ao maravilhoso, que tinha papel notável no pensamento durante a passagem da Idade Média à Renascença.
A maior parte dos estudiosos da descoberta se concentra num aspecto ou noutro; mas a lição de Greenblatt está em mostrar como do próprio texto, ou do imaginário, de Colombo se pode chegar ao que há de imperial e expansionista em sua empresa. Economia e fantasia não são dois mundos separados, com relações externas, como contexto e texto. Já do texto se vislumbra o mundo que ele pensa e transforma.
Isso Gleenblatt faz confrontando os escritos de Colombo com uma obra de impacto em sua época: as "Viagens de Sir John Mandeville". Esse livro, atribuído a um inglês do século 14, narra o encontro, na Ásia, de tudo o que é surpreendente, inclusive seres humanos disformes. As "Viagens" foram muito lidas, ressoando por mais de 200 anos: um de seus admiradores era o moleiro herege de "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg, no final do século 16.
Mandeville, diz Greenblatt, é bom exemplo da "dispossession" medieval: não procura confiscar as coisas que o maravilham. O Oriente não é, ainda, território liberado para a ganância ocidental. Mandeville não pega para si as pedras preciosas que vê num vale digno das "Mil e Uma Noites", nem denigre as religiões e costumes estranhos que relata. O medieval respeita o outro.
Tudo muda, em Colombo. Pela primeira vez na história, o espanto embasa o confisco, o esbulho, a apropriação do outro. Colombo continua ligado ao mundo medieval. Mas sua novidade está em dissolver a diferença espantosa mediante uma vontade de poder sem precedentes em sua eficácia. Com as "possessões", começa a modernidade.
Greenblatt assim denuncia a destruição ocidental do outro, mediante um estudo "por dentro" do discurso dos conquistadores. Não precisa dizer quantos índios foram exterminados; o genocídio já está presente no modo como Colombo diz "compreender" o que lhe dizem os índios com quem "conversa". O resto será consequência. Daí, a originalidade de uma abordagem que, analisando textos, desmonta a "economia discursiva de Colombo", eixo de seu "imperialismo cristão".
Tomemos o relato dos primeiros encontros com índios. Nenhum dos lados tem a menor idéia de quem seja o outro, ou de sua língua. No entanto, Colombo não demora a imaginar o que os "príncipes" indígenas lhe estariam dizendo -sempre elogios aos reis de Espanha, sempre submissão a seu emissário. Da mesma forma, aliás, o navegante vai dando nome a ilhas que, sabe ele muito bem, já tinham nomes índios.
Começa aqui uma troca da maior importância, a de palavras -que funda a troca de objetos culturais e de valores em todos os sentidos do termo. Uma troca desigual: os nativos retribuem com ouro as miçangas que ganham dos europeus -os quais, aliás, não têm vergonha em se gabar das vantagens que assim levam.
Mas o importante nesse livro, insisto, está em mostrar como, já na relação entre as linguagens, se inscreve a desigualdade, que fundará em pouco tempo a espoliação econômica e o genocídio. Interpretar o que o outro disse e batizar suas terras são gestos primordiais de apropriação.
Dar nome é conquistar, eis a novidade que elimina o que restava de inocência nos viajantes medievais. A maravilha se engrena agora na mais intensa ganância. Nomear é tomar. Mas isso qualquer moderno sabe, e não está aí a ênfase de Greenblatt.
O importante em "Possessões Maravilhosas" está em notar que as trocas colombianas -e coloniais- são desiguais. Elas põem em cena intenções díspares. O que para os índios é presente, e vale sobretudo por sua beleza (daí o sucesso dos espelhos e de tudo o que reluz), para os europeus é mercadoria, e se mede pelo capitalismo emergente.
Ora, assim como a língua européia se pretende superior à nativa, também a troca no mercado se diz superior ao jogo de dons e contradons, impondo a civilização sobre a infância e a ignorância, ou o bem sobre o mal. Tirar dos índios tudo o que eles têm é um modo de desnudá-los, até reduzi-los a um papel em branco, no qual o invasor escreverá sua fé, sua cultura, sua economia.
Por trás desse mal-entendido tão útil para uma das partes, há uma diferença radical de tecnologias culturais. A européia é mais poderosa: tem escrita, cavalos e cães treinados para a guerra, armas altamente letais. Mas esse aparato tecnológico deve seu poder a uma série de convicções, que, em linguagem coerente com nosso autor, mesmo que não seja a dele, poderíamos chamar vontade ilimitada de poder. É uma nova relação com o ilimitado, se não com o infinito, o que permite o deslanche ocidental.
A tecnologia nada pode sem uma base política e civilizacional que a antecede: como diz Heidegger, "a essência da técnica não é nada de técnico". Acrescentemos: antes da Renascença, nenhuma cultura se propôs sistematicamente a ganhar o ilimitado. Os medievais, na sua política de guerras restritas, como no desdém que tinham pelo ilimitado na própria cosmologia, seriam incapazes de organizar a devastação que o Ocidente promoveu desde as descobertas, e na qual continuamos impregnados.
As descobertas assim expressam uma assustadora mudança na forma ocidental de lidar com a alteridade. Até 500 anos atrás, o encontro do outro expunha os elos ocultos que nos prendiam a ele. Mas os primeiros modernos, para poderem conquistar, para vencerem os limites do continente europeu, precisaram negar tais elos. Ora, negar os vínculos com o outro exige que neguemos o que o outro mostra de nós mesmos.
Ou seja: há enorme custo emocional numa empresa de conquista ilimitada. Exemplo disso está na interpretação, bem original, que Greenblatt faz do horror europeu ao canibalismo. Ele sugere que a denúncia da antropofagia ameríndia estaria ligada ao debate europeu sobre a hóstia. Os protestantes acusavam os católicos de comer Cristo, já que para estes a hóstia é o próprio corpo de Deus Filho. A aversão ao índio que come outro homem seria acentuada, justamente, para impedir uma identificação possível entre comedores indígenas de gente e comedores católicos de Deus.
Não há conquista sem um enorme bloqueio mental. Vê-se que perspectivas essa tese abre para uma psicologia do conquistador, ou para avaliar o custo psicológico que teve o expansionismo europeu na segunda metade do segundo milênio. São custos que a economia convencional ainda hoje ignora, aquela que reivindica uma racionalidade somente sua.
Toda sociedade anterior à moderna de algum modo reconheceu limites e receou a "hybris", a desmedida, a busca ilimitada de bens e poder. Só o Ocidente, desde as descobertas, fez da ambição sem limites o seu farol. O que se perdeu com isso, não só nas culturas derrotadas (na "história dos vencidos"), mas na própria cultura dos vencedores, é a questão que esta obra de Greenblatt põe em cena.

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