São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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A pedagogia da imagem

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Inácio Araujo, escritor mais ou menos secreto, montador de filmes, roteirista de cinema, crítico da Folha, publicou recentemente "Cinema - O Mundo em Movimento", destinado ao público jovem. Triste a sina dos críticos de hoje: ou bem escrevem ensaio e ficam confinados nos suplementos para intelectuais, ou publicam pílulas de opinião nos segundos cadernos ilustrados. Em um parágrafo têm que dizer se um filme é bom ou ruim. Às vezes, a carinha sorri; ora o bonequinho afunda na poltrona. O editor, com o olho esticado para a agitação da mídia, não lhes permite o saudável exercício da nuance, da sutileza, do reconhecimento da imperfeição interessante, do problema de fatura que virou solução estética etc. etc.
Há uma vocação para o magistério na crítica brasileira de cinema. Almeida Salles, nas páginas remotas do "Estado de S. Paulo" dos 1950, foi quem melhor assumiu esse papel, omitindo seu julgamento pessoal para valorizar os elementos que permitissem ao leitor avaliar a obra em tela. Como um mestre do bom gosto, das boas maneiras, o crítico tomava o leitor pela mão e trilhava com ele um caminho suave, em cujo percurso pudesse "instruir sem cansar".
O livrinho de Inácio é uma cartilha, que ensina a ler as imagens e esboça uma discreta morfologia do gosto. O crítico despe-se da capa solene do sabichão e se coloca ao lado do seu pequeno leitor, justamente para estimulá-lo a ver com os próprios olhos: "Nós, espectadores, quanto mais vamos ao cinema, mais aprimoramos o nosso gosto. Por isso, não devemos nos preocupar excessivamente com as opiniões dos críticos e especialistas. Embora elas mereçam ser levadas em conta, a experiência que temos de um filme é muito pessoal (e, portanto, subjetiva)". As perguntas que Inácio quer ajudar o seu leitor a responder são: por que gosto (ou não gosto) de um filme? Quando é bem (ou mal) feito?
Se para Inácio Araujo o cinema é uma linguagem que deve "apreender o real", a opinião se plasma no encontro de uma experiência -sempre pessoal- com a cultura cinematográfica, cujo acesso hoje é tremendamente facilitado pela disponibilidade do vídeo, pelas retrospectivas, festivais, pela programação das TVs pagas.
O método de Inácio parte de uma premissa interessante. Para as gerações que muito cedo -antes mesmo de dominar a escrita- se apropriam dos códigos visuais via televisão, os milhares de filmes que lhes são oferecidos numa situação corriqueira aparentemente não exigem esforço para compreensão. "Tudo é, ao primeiro olhar, evidente." Superando a acomodação do olhar entorpecido pelo caos resultante de uma acumulação desordenada de imagens, cenas, diálogos e sentimentos, Inácio Araujo propõe revelar a complexa operação que existe por trás de uma determinada configuração, uma narrativa, um encadeamento cinematográfico. De uma obra que se construiu a partir de sucessivas escolhas.
Mesmo a produção corrente, em que pese a vulgaridade dominante, contém genes de uma evolução que remonta à chegada do trem na estação de Ciotat. Essa evolução, em traços bem gerais, emerge gradativamente de uma hábil manipulação das duas histórias do cinema -a do silencioso e a do falado-, evitando provocar no inexperiente leitor maiores inquietações. O resultado é uma exposição que aponta duas grandes correntes: a do cinema clássico, da narrativa transparente, em que o espectador se identifica com as personagens, e a do cinema moderno, das narrativas distanciadas, dos descentramentos, dos tempos mortos.
Inácio convoca em apoio ao seu projeto um time considerável de autores dos quais extrai epígrafes e citações. Aí comparecem Paulo Emilio Salles Gomes, Eisenstein, Billy Wilder, Cavalcanti, Rossellini, Orson Welles. Avultam no entanto as referências a François Truffaut, o crítico preferido do crítico, e Eric Rohmer, ambos egressos da revista "Cahiers du Cinéma" e arautos do cinema de autor.
Quando fala do cinema brasileiro, Inácio adota um prudente acanhamento. Eis um terreno em que as predileções pessoais custam muito caro. Os afetos são inúmeros e desencontrados e os desafetos dão um trabalho enorme para desgostar. Ao lidar com o legado do Cinema Novo, reconhece o acerto de uma política que soube romper o impedimento de produzir fora do eixo desenvolvido, conquistando uma audiência inédita e logrando uma dicção que tornava audíveis vozes antes tão distantes. Não importa se essas mesmas vozes soassem por aqui como ecos de uma utopia voluntariosa.
Inácio Araujo, cansado de escrever para todo mundo, perde de vista seu interlocutor. Por isso inventa o jovem que, à sua semelhança, procura alguma transcendência por meio do conhecimento da imagem. Para ele escreveu seu catecismo. Deus queira que não tenha sido em vão.

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