São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As rosas amarelas

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vou ao cemitério israelita de Vila Mariana, em um dia útil, para visitar os túmulos de parentes próximos e o de um jovem soldado.
A última razão supera a primeira. Sempre me fascinou a morte prematura de um rapaz judeu, voluntário do "exército paulista", na Revolução de 1932. Antes de vê-la como um trágico contra-senso -a morte de um filho de imigrantes, em defesa da oligarquia de São Paulo-, vislumbrava nela o índice de um outro fenômeno: o da integração da velha sociedade paulista com os contingentes estrangeiros, que se processou ao longo das primeiras décadas do século.
Além disso, vou em busca de dados para um texto de memória familiar que estou escrevendo. Quero recuperar datas de nascimento e morte dos parentes, além de reviver a impressão causada, na adolescência, pelo túmulo do moço voluntário.
Chego de carro. Sem parar, passo em frente ao portão aberto do cemitério católico, contíguo ao israelita e, logo a seguir, em frente ao portão deste. Mas ele está fechado. Conclusão lógica: como existe um portão interno, no muro divisório dos dois cemitérios, deve ser por ali a entrada, nos dias de semana.
Em meio às cruzes, aos obeliscos modestos de um cemitério de classe média, indago de uma figura cinza se meu caminho está certo. A figura cinza me responde que não: "O senhor toca a campainha da entrada, que o japonês vem atender". Estranha referência de um filho do sol nascente, velando o sono de mortos judeus.
A indicação é correta, ou quase, pois quem me atende é dona Myoko, "a mulher do japonês", afável e discreta, nos seus 40 anos. Explico-lhe só em parte a razão da visita e repasso os túmulos dos parentes, anotando datas.
Afasto-me da minha gente, em busca do soldado constitucionalista. Vai ser fácil localizar o túmulo pois, apesar de não vê-lo há anos, lembro-me bem de seus traços inconfundíveis: a pedra cor-de-rosa, o capacete esverdeado, um minúsculo canteiro, de onde brotam duas rosas amarelas. Constato que há muitos túmulos de pedra cor-de-rosa, à direita e à esquerda; quando chego perto, só encontro epitáfios em hebraico ou em português, pranteando a morte de esposas, maridos, filhos -perdas domésticas que pouco ou nada têm a ver com a história do soldado.
Não há outro remédio senão pedir socorro a dona Myoko e engolir a decepção pelas falhas de minha memória espacial. Explico-lhe que, há muitos anos, localizei junto com um tio um túmulo assim, assim, e ele me disse que se tratava de um parente distante nosso. A mentirinha se justificava porque a simples explicação histórica não me parecia capaz de motivar suficientemente a zelosa guardiã.
Entretanto, apesar de trabalhar ali há mais de dez anos, dona Myoko não se lembra desse jazigo; seu marido, que se aproxima furtivo, diz a mesma coisa. Ela me explica que há uma sequência cronológica na utilização do espaço. Vamos pois à área dos "convocados de 1932". Lá estão eles, reunidos pela chamada do acaso em um mesmo ano, mas nem sequer a pedra rosa aparece.
"O melhor é a gente perguntar para o coveiro mais antigo" -sugere dona Myoko- "pois ele conhece os mortos na palma da mão; o senhor se importa em descer até lá nos fundos e conversar com ele?".
Não me importo. Vamos descendo o terreno inclinado, em meio aos túmulos discretos, algumas fotografias de homens e mulheres bem vestidos, de velhos de barba e chapéu na cabeça, despontando aqui e ali.
Invadido por uma sensação inesperada de tranquilidade, faço uma observação banal: "Nos dias de hoje a gente só está sossegado em São Paulo no meio dos mortos".
"É verdade. O senhor sabe que aqui nunca teve problemas? Quer dizer, teve um tempo que uns moleques crescidos tentavam pular o muro, pelo lado do terreno vazio. Mas nós resolvemos negociar com eles, sempre damos alguma coisa e eles acabam até nos protegendo."
Começo a me encantar com a sabedoria de dona Myoko, combinando, em doses certas, modernidade e tradição, negociação contratual e troca de favores.
O coveiro sai das entranhas da Terra, respingando cimento, com uma pequena pá suspensa nas mãos.
"Túmulo com um capacete e um canteiro? Como é o capacete, é de bronze?"
Respondo que deve ser, que pouco ou nada entendo desses materiais, mas o homem afasta a hipótese que ele mesmo começara a formular:
"Não pode ser, aqui ninguém rouba nada. Não será o túmulo com uma pomba bem em cima?".
Digo que não e me vem a idéia, logo abandonada, de contemplar o símbolo do Espírito Santo, em um cemitério judeu.
Meio desanimado, esboço uma retirada. Dona Myoko corta meus passos:
"O senhor não pode ir embora assim, sem achar seu parente; hoje os registros estão todos no computador, mas a gente guarda uns cadernos antigos na administração, quem sabe dá certo?".
Sem dúvida, encontrei uma pesquisadora mais séria do que eu. Começamos a percorrer os nomes escritos à mão nos cadernos, em que constam algumas anotações prosaicas do gênero "nasceu morto". Estranhos natimortos, com nome e sobrenome, quem sabe para não correrem o risco -tão imaturos- de se perder no espaço.
Dona Myoko sugere que, para ter maiores chances, a gente poderia olhar vários anos. Explico-lhe ingenuamente que não, que seria um trabalho inútil pois, como o rapaz morrera na Revolução Constitucionalista, a procura devia se concentrar nos meses de julho a setembro de 1932. Evidentemente, "Revolução Constitucionalista" é um vazio em sua memória. Sem perceber a lógica do argumento, resolve entretanto seguir minha sugestão, ao mesmo tempo em que me incentiva:
"Se o senhor se lembrasse pelo menos de uma parte do nome, ficava bem mais fácil. Será que o sobrenome não era igual ao seu?".
O sobrenome não tinha nada a ver com o meu -é claro-, porém o incentivo dá frutos. Trocamos olhares de satisfação quando exclamo: "José!". A partir daí, conseguimos localizar o nome completo do jovem soldado e seu túmulo, algo distante "dos convocados de 32". Lá estava a lápide de pedra rosada, mas o capacete esverdeado tinha desaparecido. Em lugar dele, surgia uma placa mandada colocar pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, homenageando o colega morto em defesa da constitucionalidade, nos campos do Sul.
Meio desconcertado, preparo uma desculpa, na certeza de que dona Myoko, mais o marido, mais o coveiro vão me passar uma discreta descompostura, do gênero: "A gente não disse? A gente conhece muito bem os túmulos, como não íamos reparar logo num diferente?".
A defesa, mal esboçada, se revela inútil:
"Não se preocupe, o senhor disse que o rapaz morreu na guerra e a placa confirma isso; o importante é que o senhor localizou seu parente".
Insisto, lembrando que todos perderam tempo com minha informação errada.
"Que nada" -devolve dona Myoko- "ninguém vai pra guerra sem capacete, né? E, depois, o que seria do mundo se não existisse a imaginação?".
Saio do cemitério de Vila Mariana de alma leve, sensação única em mais de 50 anos. Mas uma pergunta se insinua: que teria sido feito do canteiro de rosas amarelas?

Texto Anterior: SMALL ELEGY; PEQUENA ELEGIA; ON THE MEND; SOBRE O REMENDO; A NEW CHAIR; UMA NOVA CADEIRA
Próximo Texto: Filmes de Malle e Hitchcock têm remakes
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.