São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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SONS

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrita em russo, em 1923, "Sons" (Zvuki) foi a terceira história de Nabokov (depois de "O Espírito do Bosque" e "Fala-se Russo") e permaneceu inédita até sua publicação recente em inglês, na revista "The New Yorker" (14/8/95). Mais recentemente ainda, foi incluída na coletânea "The Stories of Vladimir Nabokov" (Knopf), que reúne os 65 contos do autor.
Na época em que escreveu esta história, Nabokov tinha acabado seus estudos em Cambridge e voltado a viver com a família, exilada em Berlim (onde seu pai fora assassinado num comício político, um ano antes). Nabokov já publicara dois volumes de poesia e uma tradução para o russo de "Alice no País das Maravilhas".
A história recria, à sua maneira, um caso romântico do autor com sua prima Tatiana Evglenievna Segelkranz; personagens e circunstâncias reaparecem no romance "O Presente" (1937) e também no conto "O Círculo" (1934), em "Uma Beldade Russa e Outras Histórias". De forma menos explícita, mas significativa, já pode-se ler em "Sons" uma preocupação com a gama variada de crueldades humanas -involuntárias, conscientes ou passionais-, um dos grandes temas da obra de Nabokov. Na auto-acusação velada do narrador e na expiação insuficiente que é o ato de escrever a história, já se percebe um prenúncio dos admiráveis e miseráveis anti-heróis Humbert Humbert e Charles Kinbote, em seus dois maiores romances: "Lolita" (1955) e "Fogo Pálido" (1962).
Esta tradução, a primeira em português, foi feita a partir da tradução inglesa de Dmitri Nabokov, filho do autor e tradutor (em colaboração com o pai) de quase todos os seus contos e vários romances. Como Samuel Beckett, Nabokov é um autor que existe em duas línguas, ou entre duas línguas. As versões inglesas de seus livros em russo representam algo menos que originais, mas mais que traduções comuns. São recriações "autorizadas", numa segunda língua. (O mesmo vale, naturalmente, para as traduções russas dos livros em inglês.)
Os que podem ler afirmam que nada substitui a felicidade da língua russa nas mãos de Nabokov. Mas ele, que não acreditava em Deus, mas acreditava piamente na imortalidade da alma, decerto guiou (é o que parece) as mãos bem treinadas do filho. Minha esperança é só que o fantasma tenha contribuído, em qualquer medida, para a arte menor de um outro exilado, não só do país, mas também da língua russa.

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