São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Modos brasileiros de escapar do "não"

MICHAEL KEPP
ESPECIAL PARA A FOLHA

Universalmente, as pessoas se escondem atrás de expressões comprometedoras para evitar assumir a responsabilidade pelos atos ou opiniões e para fugir dos confrontos embaraçosos. Se essa "esquiva retórica" fosse uma disciplina acadêmica, os brasileiros seriam PhDs nela.
Seu talento nesse campo vem de eles terem aprendido como navegar em torno dos negativos. Veja as expressões propositadamente vagas como "pode ser", "vamos ver", "se der", da qual os brasileiros diariamente se apropriam para desviar da palavra "não". É por essa razão que frases igualmente descompromissadas como "eu te ligo", "a gente se vê" e "apareça lá em casa" normalmente são escapadas, e não promessas, de um novo encontro.
A dificuldade com o negativo fica claro principalmente em alguns cariocas, que são craques em convites sem fundos: marcam e depois dão "o bolo". O álibi: "houve um desencontro".
"Pô, você sumiu!!?", uma esquiva mais sutil, não deveria ser confundida com "que saudade!", que pode ser, ou não, verdade. "Sumiu!!??" é uma reação sem graça, que transfere habilmente o peso do sumiço para o outro.
Esses hábitos já estão enraizados nessa cultura. Sérgio Buarque de Holanda os flagrou mais de meio século atrás no seu estudo do "homem cordial", um tipo de enganador charmoso.
Membros dessa espécie híbrida, meio malandra, meio diplomata, podem ser classificados como "morde-e-assopra brasiliensis". Eles se comunicam por meio de frases como "eu fico devendo". Essa declaração faz com que qualquer trato não cumprido soe como um acordo amistoso.
"Não deu" é uma outra forma desse camaleão social camuflar sua saída de um trato não assumido. "Não deu" antecipa "fica para a próxima", que, como "eu fico devendo", empurra qualquer compromisso para o dia de São Nunca, o padroeiro do "homem cordial".
"Eu estou com a maioria" é como alguém, não querendo se expor, mascara sua opinião diante de uma discussão politicamente inflamável -sem ter a menor idéia de quem está com a maioria ou o que ela pensa. Assim como, ao descrever alguém como de "uma boa aparência", ele tenta fracamente mascarar uma preferência racista para que não pareça ofensiva.
"Foi uma fatalidade" ou "o elemento faleceu" é como um policial, que atirou fatalmente em um suspeito, se pronuncia ante a imprensa. Tradução: "Deus tirou-lhe a vida". "Eu só fiz o furo".
E locutores de futebol driblam o erro do seu jogador preferido, que chutou uma bola para fora, narrando: "O campo estreitou" ou "o campo acabou".
Católicos praticantes, craques em usar a confissão para se absolver de seus deslizes e de suas enganações mais graves, têm transformado esse ato sagrado na mais institucionalizada de todas as esquivas brasileiras.
Eu fui criado não no Brasil católico, mas na América protestante, onde a salvação está ligada à conduta pessoal e moral rígida no cotidiano, e não na redenção. Isso ajuda a explicar porque os americanos são muito mais bruscos do que os brasileiros, que são mais corteses. É por isso que os brasileiros nos chamam de "objetivos", para não dizerem que somos grosseiros.
Esse modo brusco explica porque um americano encerra um convite, informando, "I'm sorry, but I can't. I'm too busy" ("Desculpe, mas não posso, estou ocupado demais"). Essa resposta definitiva, como o "no" (não) americano categórico, dá um golpe no ego. Mas enrola menos do que "eu te ligo".
Meus conterrâneos acham que quanto mais rápido se sofrer esse golpe, mais rápido se recupera. Muito mais rápido do que o "bolo" bem brasileiro. E a idéia de um "desencontro" para nós é tão alienígena quanto essa palavra é intraduzível em inglês.
Brasileiros também recorrem aos gestos padronizados para tirar o corpo fora dos seus atos. Quando um motorista apressado dá cortadas no trânsito, enquanto sorri, pisca o olho e mostra o polegar para cima, ele não está pedindo seu perdão. Ele está pedindo sua cumplicidade para suas burradas.
Nessa costura de tantas cortadas, esse "homem cordial" pode até agradecer por essa cumplicidade, gesticulando que seu farol está aceso ou que sua porta está aberta. Essa espécie "morde-e-assopra" está longe do perigo de extinção e é facilmente encontrada nos engarrafamentos em dias de verão.
A dificuldade de assumir compromissos nessa cultura é tão enraizada, que é árduo crer nos brasileiros que fogem desse padrão.
Então, quando alguém que eu acabo de contratar diz: "Deixa comigo", e, pior ainda, me dá "já, já" como prazo, a experiência tem-me ensinado a "botar as barbas de molho".
Essa é a única forma de me resguardar de uma explicação meio confusa, que começa com "é o seguinte...", prossegue com "não deu" e acaba com "fica para a próxima".

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