São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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A discórdia silenciada

ELISABETH ROUDINESCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A palavra "psicanálise" apareceu em 1896 num texto de Sigmund Freud redigido em francês. Um ano antes, Freud tinha publicado com seu amigo Josef Breuer os famosos "Estudos sobre a Histeria", nos quais relatava o caso de uma garota judia de Viena que sofria um mal estranho, de origem psíquica.
A paciente se chamava Bertha Pappenheim, e Breuer, seu médico, chamou-a de Anna O. Sua história se tornaria legendária, já que foi a Anna O., uma mulher, e não a um sábio, que seria atribuída a invenção do método psicanalítico: uma cura fundamentada na palavra, uma cura na qual o fato de verbalizar o sofrimento, de encontrar palavras para expressá-lo, permite curá-lo -ou pelo menos conscientizar-se de suas causas e de sua origem e, portanto, assumi-lo e dominá-lo.
Em 1995, como em 1996, celebra-se no mundo todo o centenário da psicanálise e o centenário de Anna O., assim como o centenário do cinematógrafo. Aliás, esses dois domínios apresentam o mesmo sintoma. O cinematógrafo, tal como o conhecemos em seu esplendor americano, italiano ou japonês, o cinema de autor, de Jean Renoir a Jean-Luc Godard, passando pelos grandes nomes hollywoodianos, foi suplantado pela estética dos efeitos especiais, da publicidade, da tela de computador etc... Ou seja, ele desapareceu com a voga de uma tecnologia da não-comunicação pretensamente "comunicativa".
O espectador do cinematógrafo foi reduzido à pura cinefilia. Ele se tornou um espectador melancólico. Reencontramos essa melancolia nas nossas sociedades industriais avançadas: ela é a doença que domina essas sociedades, do mesmo modo que a histeria dominava Viena, representada por Anna O., ou Paris, representada pela figura de Augustine no hospital de Salpêtrière. Normalmente, ela é chamada de depressão, forma atenuada da melancolia, doença na qual também reina, como dizia Freud, uma espécie de impossibilidade de realizar um luto.
Essa mesma depressão atinge a psicanálise, sua história e suas instituições. Atualmente, Anna O. foi declarada "dissimulada" pelos historiadores revisionistas e antifreudianos, enquanto as diversas escolas psicanalíticas se dedicam a guerras fratricidas que destroem o freudismo, ao tentar transformá-lo num dogma.
Se há um século a histeria foi a expressão de uma revolta que se manifestava pelo corpo das mulheres para ser levada em conta pelo discurso freudiano, a depressão funciona hoje como o paradigma da impossibilidade de contestar a ordem estabelecida. Nos países avançados, tudo se passa como se qualquer revolta estivesse destinada ao fracasso, como se a própria idéia de uma revolução social ou intelectual tivesse se tornado impossível. Daí a melancolia e o desenvolvimento de um individualismo sem sujeito, fundado num dobrar-se sobre si mesmo narcísico.
É sobre esse dobrar-se sobre si mesmo e essa melancolia que, à sua maneira, se debruça o filósofo Jacques Derrida, num livro publicado na França com o título "Résistances de la Psychanalyse". A obra se apresenta como uma reflexão melancólica sobre o desaparecimento da psicanálise num mundo dominado pela eficácia econômica e como uma homenagem prestada a dois grandes intérpretes do pensamento freudiano: Jacques Lacan e Michel Foucault.
Freud via na resistência um mecanismo por meio do qual o sujeito se opõe ao que lhe vem do inconsciente. Consequentemente, ele achava que o acolhimento hostil dado à psicanálise advinha em grande parte da humilhação a que ela submeteu o homem, ao revelar que ele não era mais o senhor de sua consciência.
Partindo dessa "resistência à psicanálise", Derrida sublinha até que ponto esta é uma época que já passou: hoje, tudo se passa como se a psicanálise tivesse sido tão assimilada pela sociedade ocidental que já pudesse ser esquecida e, quem sabe, até mesmo ser relegada, como um medicamento abandonado no fundo de uma farmácia, cuja validade tivesse vencido: "Isso pode servir em caso de urgência ou na falta de outros recursos, mas já foram inventados outros muito melhores".
Esse esquecimento, que caminha de mãos dadas com o retorno de uma explicação puramente organicista dos fenômenos psíquicos, alimenta-se de uma outra resistência, uma resistência da psicanálise em relação a si mesma, instituída desde sua origem como "um processo auto-imunitário".
Como se pôde constatar em dezembro no caso da Biblioteca do Congresso, em Washington (ver Mais! de 28/1/96), essa resistência (ou resignação) "do interior" tornou-se tão forte nos psicanalistas americanos, que eles não souberam reagir à censura com as armas de uma verdadeira resistência. Foi preciso o protesto um pouco tardio de Horacio Etchegoyen, presidente (argentino) da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) para salvar o freudismo ortodoxo da desonra.
O cancelamento da exposição sobre Freud deixou claro, aliás, como a venerável instituição de Washington é capaz de cair em descrédito. Algumas semanas depois do caso do centenário boicotado, deveria ter sido realizada uma exposição sobre a vida dos escravos nas plantações do Sul. Pois bem, ela também teve de ser cancelada, a pedido dos empregados de cor negra da biblioteca. Eles a julgaram "politicamente incorreta", apesar dos veementes protestos de um magistrado republicano, também negro, que teve a coragem de se levantar contra a tolice de sua própria comunidade.
Seguindo essa lógica, por que não proibir em todos os cinemas da América a projeção de "...E o Vento Levou" ou de "O Nascimento de uma Nação"? Se hoje, por causa da comunidade negra, é indecente expor os arquivos de um passado escravocrata e se, sob a mesma perspectiva, é impossível falar sexualmente de Freud sem assustar a consciência puritana das feministas radicais, dos "desconstrutivistas" irritados ou dos cognitivistas que carecem de racionalidade, isso quer dizer que, no Ocidente, já vai longe o tempo em que a palavra "resistência" ainda servia para subverter a tirania do pensamento único.

Tradução de LUCIANA ARTACHO PENNA

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