São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Resistir à transcendência

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assistindo, em 12 de dezembro passado, ao discurso de Pierre Bourdieu em Paris, na Gare de Lyon, um depósito cheio de ferroviários em greve, no qual ele defendia o apoio ativo que os intelectuais poderiam e deveriam dar à greve nacional, me perguntei por que ainda na França, e talvez somente aqui, o filósofo tem público? Por que esta exceção?
A resposta que Bourdieu dava era bastante simples para aqueles que cresceram à sombra da cultura republicana francesa. Era surpreendente, porém, para quem a desconhece. A sua resposta era a seguinte: a filosofia é um serviço público, construído desde os tempos da Terceira República, um serviço para a construção da solidariedade nacional, para a expansão da igualdade e, portanto, participativa nas formas de vida e nas lutas que trabalham para esse fim.
Consequentemente, continuava Bourdieu, nós, intelectuais, e vocês, ferroviários em luta, somos todos filósofos, na medida em que nos opomos à "noblesse d'État" que se apropria do bem público, àquela "tirania dos experts", que recitam as ladainhas do novo "leviatanismo-mercado mundial", e aqueles tecnocratas que fora do liberalismo só enxergam a barbárie.
Assim, nós, filósofos, lutando contra o "pensamento único" do pós-modernismo, podemos juntos recriar o serviço público e um Estado social mais igualitário, no qual as novas possibilidades de construir riquezas por meio da informação e da cultura se transformem num bem universal.
Eu, pequeno europeu provinciano, fiquei espantado frente a essa poderosa retórica e acima de tudo frente à sóbria e contundente receptividade do público. Por que esse discurso ali era possível? Como explicar a intensidade e a eficácia do apelo filosófico? Não era somente a herança histórica (a grande revolução, os pais da Terceira República, os vários Jean Jaurés) que justificava a vitalidade do diálogo.
Em primeiro lugar, havia uma questão que eu tive que me colocar: qual era a filosofia francesa que podia ser chamada testemunha da revolta? A resposta me vinha aos poucos, pensando em tudo que, depois dos grandes entusiasmos subversivos do pós-guerra, tinha acontecido não só em, mas sobretudo após 1968.
O terreno foi ocupado pelos milhares de destruidores da esperança de uma transformação radical da vida (os chamados "novos filósofos"), mas uma linha poderosa, às vezes clandestina, sempre desprezada e excluída, finalmente emergiu hegemonicamente. Não só nas instituições acadêmicas, não na ideologia dominante, mas no público -entre os professores da escola primária e secundária, entre os jovens sociólogos que trabalhavam na "cidade", nas novas estratificações dos trabalhadores intelectuais que constituem o grosso de uma classe média proletarizada.
Eram a filosofia, a sociologia, a história (guardadas as devidas diferenças) que se uniam aos nomes de Deleuze, de Bourdieu, de Foucault, entre outros, e destacando aquele "pícaro" do pensamento: Félix Guattari. A exceção filosófica francesa consistia em ter determinado um terreno singular de reflexão: o campo da imanência. Esta filosofia francesa (que sem medo de errar podemos chamar de "a" filosofia francesa) constituía nesse sentido a tomada de posição contra as duas filosofias principais do mundo capitalista: a fenomenologia, na sua versão heideggeriana, e a filosofia analítica.
E a mim mesmo tentava explicar: o campo da imanência, saber-mundo, não se opõe à globalização, ao contrário, a deseja; opõe-se à transcendência, a qualquer forma de poder que se coloque fora do homem e da comunidade, isto é, à ideologia e à prática da globalização capitalista. A oposição à fenomenologia de Heidegger (o saber do destino) e às filosofias analíticas (a anatomia da linguagem como impotência ontológica) clarifica a direção da filosofia no campo da imanência: constituição autônoma do real, produção das livres singularidades, reapropriação do "espaço político", renovação perene da resistência contra qualquer forma de poder que transcende o movimento real.
A oposição é radical: além dessa filosofia não existe o político, não existe a "cidade", mas só a polícia, a tecnocracia, a mídia e o domínio. Esta filosofia é um apelo à co-produção do saber e do poder: é viver na força da multidão. Em segundo lugar, me perguntava se agora, dentro dessa assembléia de ferroviários e produtores de cultura, fica claro quem é, na França, o público co-produtor dessa filosofia, quem pode ser fora daqui, em outros países?
Resposta: por certo, não os funcionários e os burocratas da filosofia institucional -quando o fazem, olham para a filosofia francesa somente para roubar-lhe a vitalidade (sobre isso existem muitas coisas a serem ditas, não tanto a propósito de Derrida, quanto ao sucesso internacional do derridaísmo).
Não, o público mundial da filosofia francesa são as mulheres e os homens que começaram a juntar com sofrimento e força as novas formas da produção (intelectual, imaterial e cooperativa) e a compreensão crítica inerente a esta atividade aos problemas da vida e da política, ao "bios". Aqueles que nesse terreno, novíssimo, descobrem as novas contradições que nascem da exploração (palavra maldita, muitas vezes exorcizada) da nova organização. O campo da imanência é o lugar no qual se instaura a crítica que as pessoas trazem a cada expropriação do trabalho, do saber e da força.
Eis o que fazia Bourdieu: uma exaltação do campo da imanência. É sobre esse conteúdo metafísico que, em qualquer lugar do mundo, um público pode ser co-produtor da filosofia. E provavelmente da riqueza e da liberdade.

Tradução de SIMONETTA PERSICHETTI

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