São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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ONU cobrará a dívida do Brasil

DANIELA FALCÃO
DE NOVA YORK

O secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, fará um apelo para que o Brasil pague os US$ 41,8 milhões que deve às Nações Unidas quando chegar a São Paulo, na terça-feira, para uma visita de quatro dias ao país.
Segundo o egípcio Boutros-Ghali, a ONU está à beira da falência. "Vou ao Brasil implorar para que os países da América Latina paguem suas dívidas. A crise financeira da ONU é grave e os governos têm de entender isso. Quando se discute o orçamento de um país, ninguém faz lobby pró-ONU. Minha função será esta", afirmou à Folha.
O secretário-geral negou que a visita ao Brasil e ao México faça parte da campanha para sua reeleição. Boutros-Ghali assumiu o cargo em 1992. A escolha do sucessor será feita no próximo ano.
Ele afirmou que as operações de paz da ONU não fracassaram, mas perderam a importância.
Para o secretário-geral, o papel das Nações Unidas no próximo século será o de condutora do debate sobre a resolução de problemas internacionais, como o combate às drogas, mortalidade infantil e controle do crescimento populacional.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Folha, na quinta-feira passada, na sede da ONU, em Nova York.
*
Folha - Qual o motivo da viagem à América Latina?
Boutros Boutros-Ghali - Obter do Brasil e México mais apoio à ONU e mostrar que nós consideramos a América Latina um continente importante.
Folha - Que tipo de apoio?
Boutros-Ghali - Qualquer tipo, principalmente financeiro. Só 32 países entre os 185 membros pagaram suas contribuições de 1996. Se conseguirmos convencer Brasil e México a pagarem, os outros países da América Latina poderão seguir o exemplo.
Folha - Algum país latino-americano já pagou integralmente as contribuições de 1996?
Boutros-Ghali - Só o Paraguai.
Folha - O sr. tratará da crise financeira da ONU com as autoridades brasileiras?
Boutros-Ghali - Claro. Precisamos sensibilizar os governantes de todos os países membros para o momento extremamente delicado por que passa a ONU. Temos dívida de US$ 3 bilhões e se as contribuições atrasadas não forem pagas teremos de fechar as portas.
Folha - Não seria mais lógico cobrar as contribuições de países como os EUA e Rússia, que são os maiores devedores?
Boutros-Ghali - Também estamos fazendo isso. Enviei no mês passado uma carta ao G-7 (grupo que reúne os sete países mais desenvolvidos) pedindo para que eles colocassem como prioridade a busca de uma solução, ao menos temporária, para a crise financeira por que a ONU está passando.
Folha - O sr. acompanha os problemas latino-americanos?
Boutros-Ghali - Esta será minha oitava visita à América Latina desde que assumi o posto de secretário-geral, em janeiro de 1992. Antes, quando era chanceler do Egito, havia visitado o continente umas sete vezes.
Folha - Como o sr. avalia a participação do Brasil na ONU?
Boutros-Ghali - O Brasil participou de várias operações de paz e teve um papel de destaque no conflito em Angola. Sua importância na ONU está crescendo, mas ainda é preciso participar mais.
Folha - O que o sr. acha da luta do governo para que o Brasil vire membro permanente do Conselho de Segurança?
Boutros-Ghali - É uma reivindicação justa. Eu sempre lutei à favor da expansão do Conselho de Segurança. Há dois anos, enviei carta a todos os países membros solicitando que fosse feito esforço para resolver a questão. Tinha esperanças de que a nova composição do conselho estivesse decidida antes da comemorações dos 50 anos da ONU no ano passado. Infelizmente, não deu.
Folha - Então o sr. concorda com a reivindicação do Brasil?
Boutros-Ghali - Acho justa, mas não cabe a mim decidir quais países farão parte do conselho. A escolha dos novos membros é a parte mais polêmica da discussão.
Mas se o Brasil quiser realmente um lugar recomendo que aumente ainda mais sua participação nas operações de paz.
Folha - Como o sr. avalia o resultado das missões de paz?
Boutros-Ghali - Satisfatório. Tivemos sucesso em missões como a de Angola. Em outras, não fomos tão bem sucedidos, mas tudo dentro das expectativas. Acho que o maior problema enfrentado pelas operações de paz é a falta de envolvimento dos países. Se houvesse maior número de nações participando, a legitimidade e o impacto das operações seria maior.
Folha - Mas muitos países pobres não têm recursos para enviar tropas às operações de paz.
Boutros-Ghali - Quem disse que eles precisam mandar tropas? Basta um general, um observador que seja. Nenhum país irá à falência por causa disso. Além de dar legitimidades às operações de paz, eles estarão melhorando sua imagem junto aos demais países.
Quanto maior a participação em assuntos internacionais, maior a credibilidade. Por isso que digo que é tão importante que os países em desenvolvimento tenham atuação participativa na ONU.
Folha - O sr. acredita que as operações de paz continuarão sendo a missão mais importante da ONU nas próximas décadas?
Boutros-Ghali - Não. Nosso grande papel no próximo século será o de encontrar soluções para os problemas que afligem países no mundo todo como mortalidade infantil, drogas, crescimento populacional, escassez de recursos.
Os governos precisam dar mais atenção à política externa porque num futuro bem próximo os problemas que parecem locais só poderão ser resolvidos com cooperação internacional. E a ONU desempenhará um papel fundamental nesta questão.
Folha - O sr. pode dar um exemplo?
Boutros-Ghali - Tome o exemplo das drogas. A princípio parece um problema local, mas não é. Porque ela é produzida num país, transportada por outro e consumida por um terceiro. A questão ambiental também é um bom exemplo de um problema que tem que ser combatido globalmente.
Não adianta um país parar de usar aerossóis se os outros não fizerem o mesmo. Os países que não derem importância à política internacional ficarão de fora das grandes decisões.
Folha - O que acha das acusações de que a ONU faz conferências demais e que elas não dão em nada?
Boutros-Ghali - Isso é bobagem. O grande mérito da ONU nos últimos 20 anos foi justamente a realizações dessas conferências. Deixamos de ser uma instituição só de políticos e diplomatas e hoje somos conhecidos pela sociedade civil, pelas ONGs (Organizações Não-Governamentais). Os resultados das conferências são lentos porque não se pode mudar a vida de um país por decreto, mas conseguimos vários avanços na área ambiental, em direitos humanos.
Folha - Especula-se que sua ida ao Brasil seria parte da campanha eleitoral para reeleição.
Boutros-Ghali - Se eu estivesse em campanha não iria à América Latina e sim à França, Reino Unido, China e outros países do Conselho de Segurança que têm o poder de vetar meu nome.
Folha - Que qualidades o novo secretário-geral precisará ter?
Boutros-Ghali - As minhas.

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