São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Parlamento israelense quer legalizar a tortura

"Pressões físicas moderadas" serão permitidas

CHRISTOPHE BOLTANSKI
DO LIBÉRATION, EM JERUSALÉM

Os agentes do Shin Bet, o serviço israelense de segurança, que desde 1987 têm autorização para usar "pressão física moderada" em seus interrogatórios, receberão em breve o aval do Knesset (Parlamento) para seus interrogatórios serem cada vez mais enérgicos.
Sob pretexto de enquadrar o Shin Bet na legislação, pela primeira vez um projeto de lei é preparado para ratificar seus métodos rápidos e eficientes.
"Pela primeira vez na história, um país vai legitimar o uso da tortura", disse Pierre Sané, secretário-geral da Anistia Internacional (AI), semana passada em Israel.
Em janeiro, o premiê Shimon Peres deu sinal verde ao projeto. Sem esperar o voto do Parlamento, organizações humanitárias já se mobilizaram.
"Não negamos que exista um problema de segurança em Israel, mas tais métodos são inaceitáveis sob quaisquer circunstâncias", declarou Pierre Sané, que chefia a delegação da AI em Israel.
Na quinta-feira, ele manteve uma longa reunião com o ministro da Justiça, David Libai, e hoje dever se reunir como Peres.
"Corre-se o risco de criar um precedente terrível", destacou Sané. "Hoje, mesmo os piores regimes não reconhecem publicamente o uso da tortura. Amanhã, eles poderão se abrigar atrás dessa lei."
O governo israelense deverá apresentar dois textos ao Parlamento. O primeiro proibirá o recurso à tortura, obedecendo a legislação internacional. O segundo autorizará as "pressões físicas moderadas".
Segundo o projeto, esses métodos são considerados legítimos em casos de perigo imediato. Até agora os agentes israelenses seguiam as recomendações da comissão Landau (ex-presidente da Alta Corte de Justiça de Israel). Foi ele quem autorizou as "pressões físicas moderadas" nos interrogatórios, excluindo, entretanto, os atos de "brutalidade que possam ferir a dignidade humana".
As medidas permitidas foram explicitadas num anexo, jamais divulgado. Na prática, a fronteira entre "tortura" e "pressões moderadas" não demora a ser transposta. No plano da legalidade internacional ela é inexistente. "Não passa de uma questão de semântica", admitiu um agente do Shin Bet.
No ano passado, diante do recrudescimento dos atentados, o Shin Bet teve seus poderes aumentados. Mesmo assim, a cada três meses tinha de obter uma autorização especial do governo.
O tema é debatido no país desde agosto passado, quando terroristas confessaram ter cometido um atentado em Israel dias depois de terem sido presos.
O ex-chefe do Shin Bet Karmi Guilon não deixou de denunciar as "boas almas" que, em nome de seus princípios, colocam a vida de israelenses em perigo.
Confrontados com uma bomba-relógio, seus serviços devem poder proceder a um interrogatório enérgico, segundo ele.
"Esse argumento não convence. Na prática, o uso de pressões físicas é sistemático e ocorre mesmo na ausência de perigo imediato", diz Eitan Felner, vice-diretor da B'tselem, associação israelense de defesa dos direitos humanos.
O palestino Chatar Aid foi uma das vítimas das "pressões físicas moderadas" praticadas pela polícia israelense e pelo Shin Bet.
Aid foi preso na noite de 6 de julho de 1993. Tinha 17 anos. Guardas de fronteira e agentes do Shin Bet invadiram sua casa, em Ezawiya, um bairro árabe de Jerusalém, e o levaram para a prisão de Moskobiya, a principal da cidade. Seu interrogatório durou 18 dias. Durante todo esse tempo, Aid praticamente não dormiu.
Ele passava as noites sentado sobre uma cadeira baixa, com as mãos amarradas às costas. "Cada vez que eu fechava os olhos um guarda me dava um tapa nos olhos", conta o rapaz, na presença de Bassem Eid, militante palestino dos direitos humanos.
As sessões para tentar arrancar confissões de Aid se realizavam a quatro ou cinco dias. O método mais usado era o da sacudida.
Entre 10 a 15 minutos, um policial o agarrava pelos ombros e o sacudia violentamente para todos os lados. A cabeça era jogada para frente e para trás com mais força, pelo fato do preso estar esgotado.
Segundo Aid, eles falavam árabe perfeitamente e vestiam roupas civis. Numa demonstração de escárnio, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de guerra dos militantes palestinos.
Em abril, Abdel Samed Hrizat, suspeito de pertencer ao Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), morreu após ser submetido a esse tratamento. Segundo um médico britânico chamado pela família da vítima, a causa da morte foi traumatismo craniano.
Chatar Aid também recebeu golpes nos órgãos genitais. Ficava horas em pé com a cabeça coberta por um capuz e os braços presos à parede por argolas de metal. Sofria dores de estômago e de costas, além de violentas enxaquecas. O médico da prisão se contentou em lhe dar uma aspirina.
Aid não era um terrorista perigoso. Não preparava um ataque suicida contra civis israelenses. O Shin Bet apenas suspeitava que ele pertencesse a um movimento palestino de oposição e que havia ateado fogo ao carro de um colaborador palestino de seu bairro.
Após duas semanas desse tratamento, Aid confessou. Um tribunal militar israelense o condenou a dois anos de prisão.

Tradução de Clara Allain

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