São Paulo, sexta-feira, 1 de março de 1996
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O Plano Cruzado não podia ser salvo

MAILSON DA NÓBREGA

O lançamento do Plano Cruzado fez dez anos. É tempo de refletir sobre um mito, o de que seu fracasso poderia ter sido evitado na reunião de Carajás, em abril de 1986.
O problema do desabastecimento já era grave naquele mês. Para enfrentá-lo, a idéia era aprovar medidas drásticas para conter a explosão de demanda que ameaçava o plano.
Defendia-se severas medidas de restrição monetária e fiscal. Era hora de iniciar o descongelamento. Da reunião pouco ou nada teria sido resolvido.
Convencionou-se dizer, a partir de então, que o Plano começara a morrer em Carajás. O raciocínio não faz o menor sentido.
Mesmo que os condicionantes culturais e políticos tivessem sido vencidos e tomadas as medidas, apenas se prolongaria um pouco a agonia do plano. Eram nulas suas chances de êxito. Nas circunstâncias, jamais daria certo.
O Cruzado deve ser lembrado não por uma miragem, mas por sua ousadia. Ele rompeu com a tradição de pensamento conservador, segundo o qual era possível vencer uma inflação como a brasileira pela via exclusiva da ortodoxia fiscal e monetária.
Mário Simonsen havia demonstrado pioneiramente o efeito retroalimentador da correção monetária. Economistas da PUC do Rio de Janeiro e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo defendiam que a inflação era movida pela inércia do movimento dos preços. Era também preciso, pois, uma adequada política de rendas.
Além da ousadia, o plano e todos os que lhe sucederam até 1991 deixaram lições inestimáveis. Primeira, que uma economia complexa como a brasileira não aguenta o desaforo do congelamento. Segunda, que o sistema de contratos não podia ser violado sem graves consequências.
Aprendeu-se que o país não dispunha então de instrumentos de gestão macroeconômica para enfrentar um boom de consumo. Com o aumento de confiança e a súbita melhoria na distribuição de renda, todos foram às compras. Era inviável ampliar instantaneamente a oferta.
A saída natural seria importar. Impossível. A economia era fechada. As regras do comércio exterior se adequavam às restrições externas inauguradas com a crise do petróleo. Destinavam-se a restringir as importações, e não o contrário.
Mesmo que o país abrisse sua economia, pouco adiantaria. Não haveria como financiar o déficit na balança comercial. Os fluxos de recursos externos estavam suspensos para os países em desenvolvimento desde a crise da dívida externa detonada pela moratória mexicana.
Outra saída seria reduzir a demanda via aumento do Imposto de Renda das pessoas físicas e profundo corte de gastos públicos. Nenhum dos caminhos era viável.
As classes menos favorecidas são isentas do IR. Qualquer elevação do imposto vigora apenas no exercício seguinte. Na época, o corte de gastos já tinha alcance limitado, diante da rigidez orçamentária, ainda que menor do que hoje.
O fracasso do Cruzado teve muito pouco a ver, pois, com a reunião de Carajás. Houve erros, é certo, como o abono salarial logo de saída e o equívoco monumental do Cruzado 2, que tentou restringir a demanda com impostos indiretos numa economia fechada, oligopolizada e dominada pela cultura da indexação.
O insucesso tampouco teve relação estreita com o regime fiscal. Mesmo com uma situação piorada pelos efeitos da Constituição de 1988, o Plano Real vem dando certo.
O Plano Real, aliás, é um sucesso por muitos fatores, entre eles, basicamente, por não usar o congelamento e ter vencido o desequilíbrio entre oferta e demanda via importações.
A economia estava aberta. As regras de comércio exterior eram o inverso das de 1986. Era possível sustentar uma âncora cambial com US$ 50 bilhões de reservas internacionais. Tão importante quanto a abertura foi, portanto, o restabelecimento dos fluxos externos a partir de 1992.
Tornou-se possível financiar déficits na balança comercial e enfrentar ataques especulativos contra a moeda, como o de março de 1995, em que o Banco Central perdeu US$ 6 bilhões de reservas. O estoque total na época do Cruzado era de US$ 8 bilhões.
O Plano Cruzado não podia mesmo prosperar. Ainda que tivesse sido possível superar seus enormes problemas, ele morreria mais à frente. No seu tempo, não existia clima favorável às reformas e as elites ainda estavam plugadas no modelo de desenvolvimento liderado pelo Estado.

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