São Paulo, sexta-feira, 1 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sivam: um testemunho

MÁRIO CESAR FLORES

O Sivam é um exemplo de "tiroteio" com que temos de conviver na democracia porque pior seria a ausência de liberdade para o contraditório.
Sua inspiração foi a conveniência de se agrupar num projeto o controle do espaço aéreo e de outras facetas da região (meio ambiente, recursos naturais, áreas indígenas, ilícitos em geral etc.). O Sivam seria o braço operacional de sensoriamento, análise e divulgação de fatos e dados para o apoio às atividades científicas, ao desenvolvimento sustentável e ao controle da região.
Do fim de 1990 ao início de 1993 muitas dezenas de técnicos trabalharam no Sistema, sob a coordenação do Ministério da Aeronáutica, escolhidos por sua experiência com sistemas complexos e por sua atribuição de controle do espaço aéreo. O sistema não foi desenvolvido pela empresa Esca, como chegou a ser propalado. A Esca apenas contribuiu com a intermediação da mão-de-obra especializada, um recurso a rigor irregular, mas comum no serviço público, impedido de contratar gente capaz com salários de mercado.
Convencidos de que a publicidade das características do Sistema facilitaria a evasão de seu controle, decidiram os ministros da Aeronáutica e de Assuntos Estratégicos recorrer ao artigo 24, inciso IX da lei nº 8.666/94, que permite a dispensa da concorrência pública pelo presidente, ouvido o Conselho de Defesa Nacional. Não é verdade, portanto, a afirmação de que não foi cumprida a lei das licitações! O decreto da dispensa recomendava a competição, concretizada por meio de concorrência que seguiu o ritual burocrático normal, respeitado o sigilo das características.
Após quatro meses de comparações técnicas, de preço e de financiamento, entre quatro consórcios e sete empresas não-consorciadas, chegou-se à conclusão de que o consórcio vencedor era o liderado pela Raytheon (12 empresas, cinco brasileiras). O quadro comparativo era claro e qualquer responsável teria adotado a mesma decisão. A solução foi apresentada ao presidente, comunicada à imprensa, que pouca atenção lhe deu, e aos concorrentes, não tendo havido recursos.
Minutados os contratos de financiamento, foram eles submetidos ao Senado e aprovados em dezembro de 94. Mas as resoluções de aprovação dividiram o financiamento entre a Raytheon e a Esca, daí resultando a volta ao Senado, quando a Esca foi retirada do projeto, para a eliminação da menção à empresa. A medida foi tumultuada por uma série de fatores, entre eles a inversão da posição do relator Gilberto Miranda, que defendera o projeto em 94.
O fato é que até o início de 95 o Sivam pouco interesse despertou. Seus passos eram objeto de notas à imprensa, que justificavam breves comentários. O pessoal do projeto apresentou-o em inúmeros foros, inclusive à imprensa, que só depois da competição passou a veicular dúvidas e suspeitas. Vejamos alguns exemplos.
A concorrente francesa teria subornado autoridades brasileiras, manobra descoberta pela CIA; surrealismo rocambolesco! A CIA conhecera a oferta francesa: se isso aconteceu, não foi no Brasil; nossa gente recebeu propostas fechadas e as abriu como manda o ritual, tudo acompanhado pelas concorrentes.
O presidente Clinton telefonou e (ou) escreveu ao presidente Itamar Franco recomendando a Raytheon. Se o fez, o presidente Itamar Franco jamais interferiu no processo; teria portanto sido inócua a ação do presidente Clinton.
Os empregados da Esca dominavam a comissão julgadora. Não: a decisão foi fruto do trabalho de vários grupos especializados, num ou noutro e no central havia assessores da escolha da Aeronáutica, pagos via Esca pela razão já exposta, mas eles nada decidiam. Aliás, a Esca sempre manifestou compreensível simpatia pela concorrente francesa, com a qual trabalhara por mais de dez anos nos Dacta.
A própria escolha da Esca como integradora nacional fora viciada pela influência da empresa. A escolha decorreu de razão óbvia: ela era a única empresa brasileira capacitada e até hoje não existe outra. Tanto que, eliminada a Esca por dívida com o INSS, a Aeronáutica teve de contratar seus técnicos. A escolha parecera tão lógica que a imprensa deu-lhe pouca atenção e nenhuma empresa apresentou objeção.
Como a Raytheon fornecerá equipamentos, os EUA controlarão a Amazônia. Pura idiossincrasia. A Thomson forneceu os equipamentos principais dos Dacta 1, 2, 3 e ninguém diz que a França controla nosso espaço aéreo. A integração sistêmica e a operação estarão a cargo de brasileiros, que controlarão o Sivam e seu produto.
Existiriam alternativas mais baratas. Não para o Sivam. A tecnologia OTH é instrumento de defesa (detecção de mísseis), propósito fora do Sivam. Sua precisão é insuficiente para o controle de tráfego e seu desempenho é incerto em região equatorial; ela foi descartada por inadequada. Quanto à tecnologia de navegação/comunicações por satélite, ela será protagônica no futuro, para controle de vôos que desejam ser controlados; no que tange aos irregulares, ela será mais útil ao delito, que voará com segurança, do que à lei. Os Dacta e o Sivam são compatíveis com, mas não dispensados por ela.
O projeto seria caro: US$ 1,4 bilhão de dólares. Seria? Esse valor corresponde a dois meses de SUS e sua aplicação deixa uma instalação útil por decênios.
A indústria nacional estariam em condições de resolver o Sivam. Convocada por edital público, compareceu, constatou sua inviabilidade técnica e de financiamento e procurou associar-se a empresas estrangeiras. Ela poderia se habilitar tecnicamente, mas, quando isso ocorresse, teríamos equipamentos sem confiabilidade, a serem comprados em pequeno número, condenadas as fábricas ao colapso após essa compra.
A participação nacional possível está presente no consórcio Raytheon (e estava nos outros) com equipamentos e serviços (inclusive a integração), num valor entre 30% e 40% do total, financiado por fontes externas!
O processo do Sivam estaria eivado de irregularidades. Quais foram as irregularidades que efetivamente macularam o processo? A intermediação de mão-de-obra especializada? Ela não afetou a decisão da competição. Tivesse sido outra a decisão, ela não deixaria de existir por isso. É preciso não transformar o Sivam em bode expiatório, pois a decisão não se restringe às relações Aeronáutica/Esca/Sivam.
Outras acusações e dúvidas, levianas, equivocadas, mas honestas, ou irrelevantes poderiam ser citadas, mas as apresentadas bastam para mostrar como o Sivam foi fustigado com a "torcida" dos perdedores da concorrência, dos que pensam em auferir vantagens numa "2ª época" e dos que preferem a ausência do controle.
Urge pôr um fim nisso e tocar o projeto, bem-concebido e bem-conduzido, mas ferido pela paixão, preconceito, idiossincrasia ou desconhecimento; esse é o caminho apontado no sério e construtivo parecer do relator senador Ramez Tebet.

Texto Anterior: Christopher volta ao Brasil
Próximo Texto: Aposentadoria de parlamentares; Estado de Direito; Pérola; Defesa paterna; Erros eternos; Trote; Preocupação; Clubes do interior; Aniversário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.