São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Lucy não era avó do homem, diz paleontólogo que descobriu o fóssil

VINICIUS TORRES FREIRE
DE PARIS

Lucy não era sua avó. Quer dizer, o fóssil quase-humano mais famoso do mundo, conhecido cientificamente como Australopithecus afarensis, não é o mais antigo ancestral conhecido do homem.
Segundo o paleontólogo francês Yves Coppens, 61, a humanidade começou com um primo mais velho de Lucy, batizado em 95 como Australopithecus anamensis.
Coppens, professor do Collège de France e considerado um dos maiores especialistas em paleontologia humana, revelou com exclusividade à Folha sua nova árvore genealógica do homem.
Para o cientista francês, Lucy, 3,2 milhões de anos, já andava sobre duas patas, mas também pulava de galho em galho. Anamensis, 4 milhões de anos, se movia apenas sobre seus pés.
Coppens foi um dos descobridores de Lucy, em 1974, e é autor de uma teoria que é uma espécie de "big bang" da origem do homem. Para ele, as famílias dos homens e dos grandes macacos (chimpanzés e gorilas) teriam se separado há 8 milhões de anos, no leste da África -e apenas lá.
Nessa época, a formação de um gigantesco vale na África equatorial teria alterado clima e vegetação. A oeste, ficou a floresta úmida. A leste do vale Rift, o clima seco fez as árvores rarearem, e apareceu uma savana.
A oeste, o ancestral comum de homens e macacos começou a se transformar em chimpanzés e gorilas. A leste, surgiram os hominídeos. Não viviam só em árvores e eram obrigados a ficar de pé para enxergar e fugir de predadores.
Coppens chama a teoria de "East Side Story" (História do Lado Leste, paródia do musical de Leonard Bernstein "West Side Story").
Em entrevista à Folha, Coppens explica sua nova teoria sobre o anamensis e contesta que sua "East Side Story" tenha sido abalada pela descoberta de outro australopiteco, Abel, no ano passado.
*
Folha - No final do ano passado foi publicada a descoberta de mais dois novos australopitecos, Abel e o Australopithecus anamensis. Não ficou muito elástica a noção de "australopiteco"? Sabe-se que alguns não pertencem à linhagem humana, mas outros, como "Lucy", seriam ancestrais diretos.
Yves Coppens - Para mim, o importante é que os australopitecos são um tipo, talvez, de subfamília: os australopitecíneos, vamos dizer. Representaram a primeira fase do tronco da evolução especificamente humana. Eram os pré-humanos. Mas há uma convivência entre linhagens derivadas dos australopitecíneos: os últimos australopitecos e os primeiros humanos.
Folha - Em resumo, existem os australopitecíneos, na origem do homem, e os australopitecos mesmo, que se extinguiram...
Coppens - É exatamente isso, pois houve o desenvolvimento de um buquê de formas, em várias direções. Algumas foram dar no homem e outras formas que não tiveram descendência, como o Australopithecus robustus, por exemplo. Mas, na subfamília dos australopitecíneos, acredito ter descoberto o ancestral do homem. É (uma idéia) nova, ainda não escrevi sobre isso.
Folha - Quem é?
Coppens - O Australopithecus anamensis. Meave Leakey (paleontóloga humana queniana), que anunciou em agosto do ano passado a identificação dessa nova espécie, a considera antecessora do Australopithecus afarensis, da "Lucy". Acho que ela está enganada. O afarensis, "Lucy", tem uma postura vertical, já anda sobre duas patas. Mas ela tem joelho e tornozelo instáveis, e articulações dos ombros, cotovelos e punhos muito firmes, como um arborícola (que vive nas árvores). O anamensis, por sua vez, tem cotovelo muito instável, e joelho muito firme...
Folha - É só bípede...
Coppens - Exatamente, como um homem. Os arborícolas têm membros inferiores mais soltos e os membros superiores firmes. Eles precisam de flexibilidade em certas articulações para trepar nas árvores e de membros inferiores que possam se projetar em todas as direções para pular nos galhos.
Folha - Australopitecos em geral não fabricavam utensílios. O anamensis talhava pedra ou a usava de quebra-nozes, como chimpanzés?
Coppens - Não se têm instrumentos associados claramente ao anamensis. Temos pedras talhadas na África oriental com mais de 3 milhões de anos. Não há certezas.
Folha - Talhadas como? Lascadas ou retocadas?
Coppens - Lascadas, na maioria das vezes. Algumas têm pequenos retoques no gume, como se fossem um raspador de alimentos. Vistos no microscópio, esses utensílios têm traços que indicam que foram usados para descascar tubérculos e raspar raízes. Não para cortar carne.
Folha - Há outro indício, ou provas, do que comiam os anamensis?
Coppens - É possível que muito cedo eles tenham sido oportunistas. Deviam pegar pequena caça. A única maneira de estudar isso é observar os dentes no microscópio. A maior parte da superfície dentária dos australopitecos é gasta como dentes de vegetarianos. A carne gasta os dentes num sentido, e os vegetais noutro. Às vezes vemos um cruzamento de linhas, mas sempre há um sentido dominante, que no caso é vegetariano.
Pode-se fazer a verificação também por meio do hábitat. Antes do Homo habilis (1,8 milhão de anos), não há indícios de acampamentos (zonas de moradia mais ou menos fixas, onde os homens primitivos paravam para comer e dormir).
Folha - Abel não muda a sua "East Side Story"?
Coppens - Não. Acho que a história se mantém. Os pré-humanos viveram entre 8 milhões e 5 milhões de anos no leste da África. Há dentes e mandíbulas de formas que viveram de 7,5 milhões a 5 milhões de anos, e depois o Australopitecos anamensis, há 4 milhões de anos.
Entre 4 milhões e 3 milhões de anos, houve provavelmente um deslocamento em todas as direções, mas necessariamente no interior de um meio ecológico comparável ao ambiente original, no leste da África. Foram para o sul e oeste.
Folha - Há uma base não-paleontológica a favor de sua teoria?
Coppens - A teoria da evolução, por exemplo. Há possibilidade de formação de novas espécies quando parte do território onde vive uma espécie é isolada. Numa população grande é muito difícil genes mutantes se encontrarem num "casamento", para dar origem a um indivíduo diferenciado. Numa população pequena, num espaço limitado, isso é mais provável.
Folha - Então não deve haver mais chances de criação de uma nova espécie a partir do homem.
Coppens - Entre 6 bilhões de homens que se mexem sem parar não há essa possibilidade. Se houvesse uma colonização...
Folha - Em Marte.
Coppens - Isso. Seria um isolamento suficiente longo para mudança. Quando o homem moderno (Homo), se espalhou pela África e Eurásia, houve dois lugares onde surgiram espécies. Na Indonésia e na Europa, há 2 milhões de anos. Na Indonésia, foram isolados pelo mar. Na Europa, pelas geleiras. Isso deu no quê? No Pithecantropus na Indonésia. E no Neandertal, na Europa, com cabeça tão assustadora, que jamais se imaginou considerá-lo um ancestral humano.

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