São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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A caldeira do diabo

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Eu podia ter morrido naquele fim de manhã, em 1961, na avenida Copacabana, mais ou menos em frente ao cinema Metro. Só fui morrer 27 anos mais tarde, no dia 8 de dezembro de 1988, mas isso não vem ao caso.
Era verão, havia duas semanas que a temperatura ficara nos 40º, com piques de 42º. E para piorar, era sábado. Experiência não desejada, mas adquirida, sabia que os meios-dias costumam ser os mais insuportáveis, o trânsito alucinado. Ainda havia bondes, indo e vindo, enormes, lerdos. Sobretudo lerdos. Sozinhos, eles entupiam a rua e faziam calor, como os animais de sangue quente.
Eu conhecera uma argentina na véspera, ela estava hospedada no Posto 3, fiquei de apanhá-la para dar um mergulho nas praias da Barra. Peguei a Simca-Chambord da qual teria saudade, pelo menos até aquela manhã. Evitei as pistas da praia com tráfego problemático, gente procurando estacionar, gente procurando gente. Entrei pela avenida Copacabana, era a alternativa mais óbvia, apesar dos bondes na contramão.
Embora lentamente, avançava em primeira, não conseguia engrenar uma segunda mas saía do lugar. Na altura do Roxy, um bonde empacou na minha frente, tive de esperar que uma Kombi me desse passagem, subi na calçada, ultrapassei o bonde, pelo retrovisor vi o filho da puta do guarda que puxou o bloquinho para anotar a infração. - "Foda-se!" -gritei pela janela, enquanto avançava mais dois ou três metros. O guarda me olhou espantado, mas ficou na esquina, o sinal pifara e ele é que fechava e abria o trânsito.
Estranhei minha reação: em geral costumo respeitar as regras e se não respeito os guardas, não tenho o hábito de insultá-los. Atribuí o desabafo ao calor.
Meia hora depois, andara mais um quarteirão. Chegaria atrasado, mas chegaria. Até que parei na esquina da rua Raimundo Correia, dava para ler, na diagonal, o cartaz do cinema Metro, "A Caldeira do Diabo", o nome de Lana Turner em destaque. Foi aí que um bonde parou e grudou no meu pára-choque dianteiro. Ao lado, um ônibus também parou, pois tinha pela frente um caminhão do "Rei da Voz".
O motorneiro, em patamar mais alto, tinha melhor visão do conjunto. Mexeu numa manivela e sentou-se num banquinho, na certeza de que, a não ser que uma legião de anjos passasse por ali e nos suspendesse, ali ficaríamos uma porrada de tempo.
O motorista do ônibus, um macaco suado, tirou a camisa e a estendeu na janela que dava para o meu lado. De tempos em tempos, o cano de descarga vomitava em cima de mim uma golfada negra de óleo queimado. E o sol transformara o ar numa pasta incandescente, magma que entrava pelos olhos, pelas narinas, pelos poros do corpo e da alma.
Olhei o relógio. Já estava atrasado meia hora. Espremido pelo bonde, pelo ônibus, pelo caminhão do "Rei da Voz", eu não sairia dali tão cedo. Surpreendi-me sem cólera, resignado. Desliguei o motor, o ponteiro da temperatura atingira o pontinho vermelho. Acendi um cigarro para fazer qualquer coisa -ou não fazer nada.
O último instante de lucidez foi esse: tirar o cigarro do maço e acendê-lo, calmamente, como se estivesse no Juca's Bar, diante de um drinque, disposto a ali ficar o resto da vida. Não me lembro se cheguei à segunda tragada. Olhei a camisa suada do motorista tapando aquela janelinha ao lado do volante. Olhei a cara do motorneiro, o único que parecia não ter pressa de ir a qualquer lugar, ele sempre andava em cima e dentro dos trilhos, não tinha culpa de nada e nada daquilo tinha a ver com ele.
O suor que me escorria pelas costas, que empapava a camisa e fazia a calça grudar-se nas minhas coxas, as golfadas de óleo queimado do ônibus, o sol que me cercava com sua muralha de luz e o calor, que já não vinha de fora, mas de mim mesmo. Tudo ferveu dentro e fora do cérebro -lembrei a tia de Paquetá que não deixava a gente ir à praia sem cobrir a nossa cabeça, para que o sol "não fritasse os miolos".
Pois era isso: o calor fritara meus miolos. Joguei fora o cigarro que mal acendera. Abri a porta, subi em cima do capô da Simca, que se amassou ao meu peso, mas o suportou e suportou minha ira.
Quis gritar, berrar palavrões, a voz não saía da garganta entupida de ódio. Ódio universal, cósmico, urbano, ódio que, não soubera como, estava dentro de mim.
Era ridículo estar ali, em cima do capô, grunhindo como um porco que vai ser imolado. Comecei a rasgar minhas roupas. Estava de camisa, short, calção de banho por baixo, sandália. Fiquei nu, com as mãos e os dentes ia destruindo o que saía do meu corpo. Quando não havia mais camisa, nem short nem calção de banho, peguei as sandálias, que eram de couro, arrebentei-as com os dentes, cuspindo os pedaços em cima de duas ou três pessoas que tentavam aplacar minha cólera.
Mas eu intimidava a todos, todos me temiam e temiam meu ódio. Eu sabia que o calor era vil, que a humanidade toda devia odiá-lo como eu o odiava, e que todos deviam fazer o mesmo, rasgar as vestes, proferir blasfêmias.
Antes de levar a porrada, acho que vi a cara alarmada do guarda a quem, duas esquinas atrás, eu chamara de filho da puta e mandara se foder. Ele viera ver o que estava acontecendo e parecia não acreditar no que estava vendo. O motorista do ônibus, que me dera inspiração, tirou a camisa da janela para melhor apreciar o meu ódio.
Não vi mais nada. Senti um esguicho de sangue saindo de alguma parte do meu corpo, sangue que desceu pelo peito, pelas pernas.
Quando acordei, estava num hospital, um enorme capacete de gaze na cabeça. Em torno dos olhos, uma dor imunda e grosseira, que fazia da memória uma pasta informe de sangue e suor. Pensei que ia morrer -ainda não sabia que só morreria 17 anos depois, a 8 de dezembro de 1988.
Quando me deram alta, li e reli várias vezes o que os jornais haviam publicado. Um psicanalista atribuiu minha nudez a um trauma de infância que me tornara exibicionista. Um economista achou que minha explosão fora motivada pelas tensões da Bolsa de Valores -eu jogava habitualmente na Bolsa e era conhecido no setor. O guarda a quem eu mandara se foder declarou que eu já estava fora de mim duas esquinas atrás, e que ele só não me prendera porque não podia largar seu posto, o sinal enguiçara, o calor derretera os fios de plástico que acionavam os comandos, os sinais da avenida Copacabana estavam enguiçados. O motorneiro do bonde estava preso.
Sentado em seu banquinho, esperando que uma legião de anjos passasse por aí e desfizesse o nó que todos haviam dado, ele vira o homem subir em cima do capô, gritar coisas desconexas, tirar a roupa, ficar nu e possesso. Achou que precisava fazer qualquer coisa e fez. Apanhou a comprida chave de ferro pendurada do lado de fora do bonde, com a qual abria ou fechava os desvios formados pelos trilhos. Dera uma pancada só, para acabar com a pouca vergonha, o homem nu como um selvagem, balançando seus troços à vista de senhoras e crianças, e da vista dele, motorneiro.
O verão de 1961 ficou registrado em minha carne. Nos 17 anos seguintes, sempre que a temperatura subia acima dos 38º, 39º, eu sentia uma comichão no alto da cabeça, onde recebera a porrada. Volta e meia, também, lembrava a tia de Paquetá que nos prevenia contra o calor que fritava os miolos.
Tiraram os bondes das ruas do Rio. A 7 de dezembro de 1988, li no jornal que a temperatura estava em elevação. Na véspera fizera 40º. Morri no dia seguinte.

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