São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Quatro movimentos progressivos do calor

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Dementia caniculae, ou loucura do calor, como vim a diagnosticá-la, é um estado brando e imperceptível, embora progressivo, que se dissemina insidiosa e impiedosamente entre os humanos até um ponto sem retorno."Dr. Horatio Lummings O Masoquista (39º) "Eram mensagens de amor, é óbvio, ela estava falando comigo quando dizia 'a onda de calor que se aproxima pelo interior deve atingir a cidade nesta tarde com altas de até 39º' ou 'para hoje, mínima de 32º e máxima de 38º', eram sinais, às vezes indiretas, queria dizer outra coisa, alguma coisa, e eu sentia que ela estava louca, às vezes, de amor, uma linguagem cifrada entre nós dois, que só cabia a mim decifrar, coisas que ela não podia falar na frente dos telespectadores ou dos ouvintes, e se não aparecia depois, como dissera que faria durante a previsão do tempo na televisão ou no rádio, sempre em código, é claro, era porque tinha sido retida, alguém, uma outra pessoa além de mim, havia decifrado a mensagem e a impedido de comparecer ao encontro naquela mesma tarde. Eram mensagens de amor que ela concebia especialmente para mim, porque não era burra, nada burra, e me amava tanto, à sua maneira cifrada, é claro, tanto que era difícil alguém perceber ou pelo menos entender o que queria dizer, no fundo, com '40º à sombra', só eu podia saber. Era difícil conter o riso quando alguém vinha me dizer 'você ouviu? Vai fazer 39 hoje à tarde', era espantoso que fossem tão estúpidos, o que para mim não podia ser melhor, que não percebessem que, no fundo, ela estava falando só comigo. E enquanto os outros morriam de calor pelas ruas, e eram capazes de matar até, enlouqueciam de calor nos engarrafamentos, suavam em bicas, corriam desesperados para o ar-condicionado, a mim bastava ligar o rádio e escutá-la. Na televisão eles diziam que a situação era drástica, que a cidade nunca tinha passado por uma tal onda de calor, e eu ria cá comigo do poder de persuasão dela, que eles caíssem assim tão fácil, acreditassem, e vivessem o que ela lhes dizia para viver, por auto-sugestão, que sofressem o que ela lhes dizia para sofrer, um mundo que não existia, quando na verdade não passava de um código, entre nós dois, era só para mim, uma mulher maravilhosa."
O Botânico (45º) Conforme os jornalistas se afastavam da cidade, a vegetação ia se rarefazendo, passando de mata a cerrado, e de cerrado a nada, que era onde vivia o botânico. Ele mesmo havia convocado a imprensa, embora suportasse com dificuldade as perguntas. Dizia ter finalmente algo a comunicar, depois de anos sem dar sinal de vida, desacreditado, ao longo dos quais se espalharam boatos de que já não dominava as suas faculdades. "Venho estudando há anos a atração de certas plantas pelo calor e cheguei a uma conclusão espantosa", disse o botânico. "Qual?", perguntou um jornalista impaciente. "Que, acima de 45º, as plantas emitem estranhos sinais, numa frequência alucinante. As plantas falam mais e mais com o aumento da temperatura", respondeu o botânico. "E se procuram o calor, é porque é o que lhes permite falar, é porque têm necessidade de falar, vocês estão entendendo?, também querem dizer alguma coisa, como vocês e eu. O calor lhes desperta a vontade de dizer alguma coisa", disse. "E quais são as consequências dessa descoberta?", quis saber outro, sem ver naquilo razão ou sentido. Ao que retrucou o botânico, já fora de controle, em parte pelo calor: "E como é que eu posso saber se, assim como acontece em relação a mim mesmo, também não faço a menor idéia do que elas estejam querendo dizer?".
A Estudante Lapônia (50º) Na falta de notícias, o jornal pediu ao cronista que escrevesse, durante o verão, uma crônica semanal narrando suas perambulações pelo mundo à procura de pessoas desconhecidas, cujos nomes, por algum acaso, lhe tivessem passado pelas mãos. O que narrava na primeira crônica, e que aqui se reproduz, era a sua viagem à Lapônia, em busca de D.M., uma mulher que, em 1957, como prêmio por sua classificação em quarto lugar no curso complementar do liceu para meninas de Sodankylã, ganhara um livro de fotografias sobre os desertos. O livro havia despertado o interesse do cronista (como teria ido parar ali?), enquanto buquinava durante as férias pelos sebos ao longo do Sena. Tinha uma foto do Saara estampada na capa e, na folha de rosto, uma etiqueta em finlandês: "Distribuição de Prêmios, Curso Complementar, quarto prêmio do Liceu para Meninas de Sodankilã, atribuído a D.M., 2 de junho de 1957". Em sua crônica, o cronista narrou suas peripécias pela neve e o gelo até Sodankylã e como, pelo sobrenome, conseguiu chegar à casa da irmã mais velha de D.M. Ao abrir-lhe a porta, a mulher, que era rósea e muito gorda, um urso dentro do seu casaco de pele, informou-lhe que a irmã havia desaparecido anos atrás, errando pelo Saara, e que, após semanas de buscas insensatas, tudo o que conseguiram recuperar foi seu "esqueleto torrado pelo sol". O cronista lhe perguntou o que D.M. tinha ido fazer no Saara, uma espécie de suicídio, afinal, e a irmã lhe respondeu que desde menina, no curso complementar, o deserto havia sido uma obsessão, que D. tentara aplacar inutilmente folheando as páginas de um livro. "Foi ao deserto atrás do que não podia ver nas fotografias", ela disse. Como ele continuasse tiritando e sem entender, ela não teve outra saída senão arrematar com o óbvio: "O calor. Estava decidida. Achava que pudesse vê-lo".
O Bombeiro (90º) Assim que entra, grita e ouve uma voz. Quer saber se ainda há alguém preso entre os escombros no meio do fogo, alguém que ainda possa salvar das chamas. E conforme vai avançando para dentro das labaredas, em sua descida aos infernos, e o calor aumentando até o humanamente insuportável, grita e ouve a voz, cada vez mais próxima e nítida. Sente que a voz o ouve também e o chama. Para acalmá-la, enquanto não a alcança, resolve contar-lhe uma história, a única que conhece, a sua própria vida, que avança à medida que ele também avança pelas colunas de fogo e a fumaça que o intoxica, aproximando-se da voz, cada vez mais para dentro do calor. E, enquanto conta a sua história, ouve a voz. Mas, de repente, dá-se conta de que, na realidade, é a voz que está lhe contando a história, que a voz é sua e que, portanto, sua história termina ali.

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