São Paulo, domingo, 3 de março de 1996 |
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"Intelectuais" e poder MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO FHC, conhecendo a violência do poder pessoal, é imperdoável ao engolir cobras e lagartos nas alianças Hoje no Brasil bancos sorvem bilhões, usineiros safam-se a fundo perdido, reinam os coronéis, objetivos nacionais perdem autonomia. "Flexibiliza-se" até o descanso semanal, rumo ao neo-escravismo. Abusa-se do trabalho infantil, crescem a falência e o desemprego, reservas indígenas são atingidas, grileiros se legitimam, aumentam os sem-teto, sem-terra, sem-saúde, sem-escola, sem-dignidade. Tudo vai bem no melhor dos países onde o dinheiro é caro e o frango barato. Fantasia de Pangloss, exibida pelo presidente e seus ministros. Como se palavras apagassem feitos. Essa retórica perfaz as doutrinas das "ciências sociais" mobilizadas para fins políticos. Entre elas a "teoria" da dependência, substituída agora pela "globalização", mais adequada à propaganda do presidente que almeja o Primeiro Mundo. O novo ideário, generalizando os movimentos socioeconômicos, apaga diferenças, esmaece o domínio em escala mundial, eclipsa a superioridade efetiva do poder, projeta a ilusão de prestígio. Abstrações compõem a última rapsódia "intelectual e científica" de FHC. Exemplo: hoje afirma ele que, com a produção "intensiva em conhecimento" -premissa verdadeira- "quem detém esse saber, muito mais que a empresa, é o trabalhador" -dedução falsa. A Fiesp o contradiz: anuncia o treinamento em novas e custosas técnicas e se dirige "às empresas interessadas", não aos "trabalhadores interessados". Vale-se do "marxismo" para justificar abusos do trabalho: "É em função dessa mudança no perfil do emprego que a flexibilização das normas trabalhistas está ocorrendo nos quatro cantos do mundo". Imagina revelar "os limites das ideologias e teorias hegemônicas deste século". Certezas universais gravitam em torno do eu sublime. Tão seguro programa político é dirigido pelos "progressistas" de quando o marxismo rendia. Hoje solapam os direitos sociais. No governo ampliam a autocomplacência e reiteram o menosprezo pelos outros, trombetas de sua propaganda cultural para obter recursos e prestígio, congregar basbaques, produzir fantasmas. A universidade pública, nesse espelho da lisonja, surge como improdutivo saco sem fundo, falatório que rendeu carreiras políticas. O vilipêndio da universidade confluiu com o desmonte militar. O mesmo grupo que explorou a marca de "perseguidos políticos" empenhou-se, naqueles dias, em desacreditá-la. "Après moi le déluge": esta, a veleidade dos que, arbitrariamente excluídos, praticaram uma autoritária manobra de terra arrasada. Quem defendeu o espaço de crítica, ensino, pesquisa e garantia institucional foi menosprezado por "engolir sapo". Nesse afã barrou-se a ajuda estrangeira, buscada para impedir intervenções nas humanidades. Obtido o auxílio alemão, à última hora o DAAD recuou, "informado" que a USP colaborava com a ditadura. A autoria desse golpe, dado pelas costas, vislumbra-se. O apelo a docentes franceses foi ignorado, atitude cuja fonte se percebe. Mas G. Lebrun manteve seu apoio prestigioso e a visita de J.P. Vernant, com sua autoridade política e intelectual, ajudou o Departamento de Filosofia a sair do campo sitiado: pelos militares, às claras; pelos "progressistas", nas sombras. História perversa a ser contada quando os detratores da universidade reforçam a dose. Eles sabem o que fazem. FHC, conhecendo a violência do poder pessoal, é imperdoável ao engolir cobras e lagartos em suas alianças. "Isso é política", diz-se: Maquiavel rebaixado a "enxada e voto"; "virt—" confundida com troca de favores. Weffort escreveu, de modo atilado, sobre o populismo, mas atribui "sensibilidade social" a ACM, eleito por tantos votos... O poder escolhe o imediato, esquecendo a crítica e o coletivo. Ruth Cardoso faz caridade como reclame do governo. Ao ministro que vê "masturbação intelectual" no plano que dirige, responde com "ações": reedita o projeto Rondon e imita o Peace Corps, gastas propagandas. Jornalistas indagam-na sobre o auxílio das Forças Armadas. Resposta: hoje os militares são outros. Não sabe que exércitos monopolizam a força física enquanto burocracia, não importa quem ocupe o cargo? Julga politizados os jovens interessados por movimentos sociais, pelos índios. Mas a antropóloga cala-se face à política genocida contra populações indígenas. "Malvadeza" nem comentou (com mulher de vizinho não se bate boca) sua alusão desairosa a ele -escorregada política, na desculpa do marido. Ainda assim, ecoa seu ditame da especialização como suficiente para o trabalho universitário, abrindo as portas para as empresas de ensino. As universidades públicas intimidam-se diante desses assaltos, ou deles são cúmplices. Nivela-se o professor universitário e o deputado. Vicentinho "negocia" a previdência acadêmica: diz-se que a "sociedade" foi chamada a discutir, como se o líder sindical pudesse representá-la no todo. O governo igualiza abstratamente e escamoteia a divisão do trabalho. Seus integrantes conhecem essa base, mas lhes convém apagá-la; quanto menos imposto reverter aos contribuintes, mais sobrará para as goiabadas e andanças. Enquanto autocomplacência e escalada socioeconômica limitavam-se a egos e esferas particulares, era possível ignorá-los. A mesma técnica de autopromoção autoritária invade a cena pública, fere garantias constitucionais, serve a interesses privados, desfavorece a qualidade de vida e o bolso do cidadão. Silenciar diante disso é ser conivente. Maria Sylvia Carvalho Franco, é professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora aposentada do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo). É autora do livro "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Ed. Kayros, 1980). Texto Anterior: A dura lei do castigo exemplar Próximo Texto: Previdência dos congressistas; Retorno garantido; Ensino religioso; Descontentamento; Terras indígenas; Progresso; Aniversário Índice |
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