São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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A dura lei do castigo exemplar

GUILLERMO CABRERA INFANTE

A tragédia urdida pela aviação castrista não foi um ato gratuito ou aleatório. Foi tudo muito bem planejado
Em janeiro de 1959, quando Fidel Castro ainda não havia completado sua tomada do poder, Raúl Castro fuzilou mais de 500 integrantes do exército e da polícia de Batista em menos de um mês, em Santiago de Cuba.
Foi uma orgia de sangue. Mas em Havana, a revista "Revolución", porta-voz do Movimento 26 de Julho, dizia: "Com certeza Fidel não sabe de nada". Mas ele mesmo havia ordenado os fuzilamentos como castigo exemplar ao exército de Batista. Mais uma vez Raúl funcionava como o Mr. Hyde (o monstro) para o Dr. Jekyll (o médico) representado por Fidel.
Agora a derrubada de dois aviõezinhos de curto alcance, desarmados e pilotados por civis, foi um aviso óbvio, um castigo exemplar como tantos outros impostos por Fidel contra agravos reais ou supostos. Não foi outra coisa o fuzilamento de seu melhor soldado, o general Arnaldo Ochoa, em 1989, aviso a possíveis desafetos dentro de seu exército.
Derrubar os dois aviões seria um castigo que serviria de aviso não para os aviadores, mas para a oposição, que pela primeira vez começava a se organizar com um inimigo interno.
Mas, ao contrário de outras vezes, algo deu errado. Os aviões civis foram derrubados como mosquitos incômodos, mas nem Castro nem seu comando aéreo contavam com a sorte. Tudo havia sido cuidadosamente preparado para derrubar os aviões e depois mostrar que estavam no espaço aéreo cubano, desobedecendo avisos da aviação castrista. Claro que o castigo não era proporcional à suposta culpa.
Mesmo que os aviões tivessem sobrevoado o espaço cubano, haveria meios de fazê-los retornar à Flórida. Mas o objetivo não era desfazer-se dos intrusos por meios pacíficos, e sim destruí-los com extrema violência. As próprias fontes oficiais cubanas o demonstram. O desenlace, entretanto, foi diferente do previsto.
Os radioescutas americanos da DEA captaram a conversa dos pilotos e os comandos militares. Uma transcrição lida no Conselho de Segurança da ONU demonstrou sua culpa máxima. Dessa vez a tecnologia de áudio e vídeo serviu como testemunha de um assassinato traiçoeiro e premeditado.
Sabemos bem que foi traiçoeiro, mas e a premeditação, onde está? Literalmente em todo lugar. Mas o verdadeiro desenlace começou em 12 de fevereiro, quando José Basulto, dirigente dos Hermanos al Rescate, entregou a Sebastián Arcos, em Miami, um cheque dos Hermanos para ser enviado a Havana, ao recém-criado Concílio Cubano, que agrupa diferentes organizações de defesa dos direitos humanos na ilha.
Uma das consequências desse gesto foi a prisão de mais de cem ativistas do Concílio. A outra, mais dramática, foi o assassinato de quatro dos Irmãos ao Resgate.
Há dois anos visitei a sede dos Hermanos, em Miami. Era um modesto apartamento, convertido em escritórios e uma sala de exposições. Nas paredes, mapas do mar, das ilhas e de Cuba. No salão principal estava exposta uma balsa resgatada da traiçoeira corrente do Golfo, que só a esperança fazia navegável, tal era sua precariedade e deterioração.
Mas o mais comovente era um álbum de fotos: algumas balsas, vários botes, mas as outras eram câmaras de caminhão convertidas em balsas. O que tornava as fotos memoráveis era que todas essas embarcações haviam sido encontradas à deriva, vazias, seus tripulantes afogados no mar.
Calcula-se que, de 1960 até hoje, mais de 10 mil cubanos tenham desaparecido na tentativa de fugir de um paraíso temível. A Marinha americana calcula que, no êxodo de 1994, mais de 12 mil cubanos morreram. E Castro ainda se gaba de que em Cuba, diferentemente de Argentina e Chile, não há desaparecidos. Ele tem razão: todos os desaparecidos estão no mar.
A tragédia urdida pela aviação castrista não foi um ato gratuito ou aleatório. Foi tudo muito bem planejado.
Em 24 de fevereiro se comemora o início da última guerra de independência contra a Espanha, e o Concílio celebraria uma primeira reunião geral em Havana. Os comandos militares sabiam que vários aviões voariam perto de Cuba nesse dia. Quem lhes garantia essa data era um tal de Roque, piloto que desertou para Miami e que voltara a Cuba um dia antes.
O ardil era derrubar os aviões e apresentar o desertor como único sobrevivente e testemunha excepcional. Borges definiu o traidor como um homem dado a lealdades sucessivas e encontradas. A última lealdade de Roque era sua primeira missão: agente duplo de Fidel. E ainda informante do FBI. Um verdadeiro herói de nosso tempo, sem dúvida. Mas sua última missão se mostrou impossível: os foguetes destroçaram dois dos aviões, mas um terceiro conseguiu escapar.
Não houve sobreviventes, nem sequer um falso náufrago. Mas Castro teve seu momento de castigo exemplar e a rotina de Cuba abandonou os simulacros de abertura e se militarizou. As últimas fotos mostram concentrações militares em toda parte, e a ilha recuperou seu aspecto verde-oliva.
Alguns comentaristas estranharam que Fidel não tenha dado sinais de vida. Apenas Raúl Castro, um Mr. Hyde demasiado frequente, se arrastou até uma tribuna para discursar para alguns militares, os mesmos de sempre. Como solução, terminará rugindo o ronco do dragão velho, mas ainda perigoso. Pois, como disse o sábio chinês, o pior do dragão é sua cauda.

Tradução de Clara Allain

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