São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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É culpa do dr. Spock

MARIO VITOR SANTOS

Hoje, a adulação aos jovens leva apenas à mediocridade
Era tanta afobação para chegar logo àquelas sessões vespertinas que o almoço de domingo desaparecia em colheradas inteiras, os dentes nem sequer chegavam a mastigar nada.
Vestir às pressas uma calça qualquer, passar um pente com água no topete e sair para a vesperal das 15h. A custo, caminhava no mesmo passo dos galalaus, calças curtas, mãos nos bolsos. Homenzinho.
Dentro do cinema enorme, só "Jim das Selvas" para conter a borrasca de pipocas, chicletes, sacos de pipocas, balas chupadas e arremessadas a esmo pela criançada histérica.
O ranger dos bancos de madeira, cujo assento era forçado para baixo pelos maiores, "ensanduichando" os ocupantes contra o encosto, era seguido pela gritaria dos palavrões quando um subia ao palco, o filme projetado na cara, contracenando abilolado, alvo alegre do facho do projetor e de uma rajada de tudo.
Instantes de silêncio só quando Tamba, a macaca, aparecia. Ninguém estava nem aí para os fachos de luz do sol que cortavam o teto sem forro. O barulho da rua entrava pela cortina de pano que fazia as vezes de porta, mas não havia muito o que ouvir.
Ademais, a fita tinha legendas. O importante no filme eram os gritos de Tamba, alguns tiros e a música de fundo que se unia aos berros e aos estampidos vindos das cadeiras.
O cinema Imperador era resultado do que a psicologia americana da época classificava como educação permissiva, isto é, sem limites claros, sem frustrações de impulsos infantis, uma extensão à classe média do que já antes era tradicional nas "classes inferiores".
Nos pobres, essas eternas crianças, reinava a incapacidade de tolerar o prazer adiado. Teria sido a frouxidão dos pais de classe média do final dos anos 50 e início do 60 que levou à contracultura e às rebeliões estudantis.
Por culpa dos pais, essa geração perdera a condição de suportar o prazer adiado, faltavam-lhe a disciplina e o autocontrole indispensáveis para conquistas pessoais e intelectuais mais árduas, que requerem padrões de competência seguidamente evocados em uma mentalidade domesticada.
Nessa avaliação, um dos principais culpados era o doutor Benjamin Spock, com suas teorias indulgentes que significavam uma adulação reverente aos jovens. Faltava "couro", como se dizia, que moldasse o caráter das crianças para que suportassem quase 30 anos de formação escolar até alcançar uma profissão e reproduzir as condições de sobrevivência e ascensão que plasmaram a classe média.
Sem satisfação do prazer imediato, eles recorriam à rebeldia e à violência. Isso foi há 30, 35 anos. Agora, ao final de um processo em que o conformismo juvenil acompanha a virada das décadas, só restou o trote para lembrar que eles existem, como se poderá notar nesta semana de volta às aulas. Não há mais por que temer o dr. Spock. Ao contrário das teorias da década de 60, a adulação não conduz mais à revolta. Só mesmo à mediocridade.

Ilustração: George Segal estrutura em metal, escultura em gesso e acrílico iluminado, 1963

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