São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
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Para secretário, desarmar "o espírito" já é uma vitória

ANTONIO ROCHA FILHO
ENVIADO ESPECIAL A VITÓRIA (ES)

Em abril de 95, Adão Rosa era subsecretário da Segurança Pública do Espírito Santo quando o governo do Estado lançou uma campanha para desarmar a população.
Durante três meses, emissoras de rádio e TV mostraram filmes sobre desarmamento e foram publicados anúncios em jornais. A campanha teve ainda cartazes em ônibus e adesivos para carros.
Embora não tenha trazido resultados expressivos na redução do número de crimes no Estado, Adão Rosa, 47, atual secretário de Segurança Pública do Espírito Santo, defende a campanha.
Ele diz não ter dados disponíveis sobre redução ou aumento de crimes, mas afirma que "a campanha atingiu seus objetivos, ao desarmar o espírito da população".
Dados da PM capixaba mostram que o número de homicídios aumentou 4,4% em 95 -início da campanha- em relação a 94 (1.305 contra 1.250). De 93 para 94 o aumento havia sido de 17,5%.
Adão Rosa, policial de carreira aposentado em 94 como chefe da Polícia Civil, concedeu entrevista à Folha após encontro com secretários de segurança da região Sudeste em que se discutiu o aumento da violência urbana.
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Folha - Quais eram os objetivos da campanha de desarmamento?
Adão Rosa - Mostrar que o desarmamento não se limitava a recolher armas. Mas também a "desarmar o espírito" de um modo geral. Muitas ocorrências policiais hoje acontecem no âmbito da família e do relacionamento mais próximo.
Folha - Quais foram os resultados?
Adão Rosa - A campanha obteve sucesso. Alcançou objetivos na medida em que foi levada à sociedade pela televisão, pelo rádio, jornais, e influenciou a comunidade.
Folha - "Desarmou os espíritos"?
Adão Rosa - Exatamente. A começar pelo próprio slogan: "Desarmamento é vida. Paz no Espírito Santo". É uma mensagem forte, que sensibiliza as pessoas. Não só desarmar no sentido prático, mas no sentido psicológico.
Folha - Em termos numéricos, houve redução de crimes?
Adão Rosa - Ainda não temos isso aferido. A campanha começou no ano passado e só poderemos medir seus efeitos neste ano. Não posso dizer se houve redução ou aumento. O que posso dizer é que, no mínimo, ela despertou a vontade de discutir.
Folha - A ação da polícia foi reforçada, não só para desarmar o cidadão comum, mas também o criminoso?
Adão Rosa - Houve um aperto na fiscalização de armas ilegais. A campanha tenta influenciar psicologicamente e, enquanto ela está sendo desenvolvida, a polícia também faz ações reais para atingir os objetivos. (Dados da Polícia Civil capixaba mostram que o número de armas apreendidas pulou de 722 em 94 para 1.193 no ano passado.)
Folha - É positivo recolher a arma de quem espera usá-la para se defender? Se a população está se armando é porque está se sentindo insegura.
Adão Rosa - Há um outro raciocínio. Se você pesquisar a origem da arma no mundo, vai ver que ela está sempre associada às guerras, às conquistas e ao poder do homem sobre o homem. A arma é um símbolo de poder. Se você pega o sujeito mais medroso que você conhece e coloca na cintura dele um 38, ele já estufa o peito. Às vezes não sabe nem usar a arma.
Folha - Então, pelo raciocínio do senhor, o cidadão não se arma porque está com medo de ser assaltado.
Adão Rosa - Não necessariamente. Ele se sente mais seguro pelo que a arma simboliza. Mas, na verdade, está se expondo mais. Armado, ele se sente capaz de subjugar o outro. A arma pode ser a infelicidade dele. Se for atacado por um ladrão, ele pode até se tornar uma vítima daquela arma se não souber usá-la. O criminoso não tem limites morais ou psicológicos para atirar. Já o cidadão comum tem uma série de bloqueios. Isso sem falar no risco de acidentes.
Folha - Que tipo de acidente?
Adão Rosa - Os disparos acidentais em casa, por exemplo. Além da falta de conhecimento do manuseio e regras básicas de segurança, há um desprezo pela segurança de terceiros. A pessoa cobra segurança. Mas, como cidadão, não toma a devida cautela. Entra no carro e se transforma num piloto de corrida. Ao mesmo tempo, reclama da sinalização, da estrada, de tudo. Mas não observa os limites que a lei impõe, como dirigir em velocidade moderada e usar o cinto de segurança. O cidadão julga que toda a segurança tem que estar voltada para ele, mas não se comporta com o mesmo rigor que exige.
Folha - Na época da campanha de desarmamento o governo conseguiu mostrar à população que não queria apenas desarmá-la e deixar o bandido armado?
Adão Rosa - Todo mundo diz: "estão querendo desarmar a população para deixar o bandido armado". Vamos ver estatisticamente quem leva a vantagem: o bandido, sempre. Então, a tese de que o cidadão armado vai pôr ordem na sociedade não é verdadeira. Se fosse verdadeira, era só autorizar que cada um de nós, independente de sua função, andasse armado.
Folha - O senhor defende uma nova legislação em que o porte ilegal de arma deixe de ser contravenção para se tornar um crime inafiançável?
Adão Rosa - Essa idéia deve prevalecer. A lei das contravenções não define qual tipo de arma é contravenção. Se você estiver armado com um fuzil, é autuado por contravenção. Se estiver com uma garrucha, também. Por outro lado, se você entra na mata, dá uma paulada e mata um tatu, é preso por crime inafiançável. Talvez a sociedade tenha se inspirado mais em algumas direções do que em outras.
Folha - Como o senhor analisa a sensação de impunidade que reina hoje no Brasil?
Adão Rosa - É também uma questão cultural. Se você observar, as pessoas sempre dizem: "neste país tal coisa não existe". É como se elas não fossem daqui ou como se não fizessem parte do que é feito de bom e de errado. Por exemplo, o sujeito está num ponto de ônibus, assiste um atropelamento e corre para assistir a agonia da vítima. Primeiro, ele se omite na prestação de socorro. Depois, vira um curioso do sofrimento alheio. E, quando a polícia chega e pergunta se ele viu o que aconteceu, vem a resposta: "não, eu cheguei agora". Ele não exerce o direito que tem de contribuir para que a punição aconteça.
Folha - E qual é a solução?
Adão Rosa - É preciso criar uma consciência coletiva de segurança pública, que só vem pela educação. Folha - E o papel do Poder Judiciário?
Adão Rosa - Não dá para culpar o Judiciário. Ele tem de fazer cumprir as leis. O nosso sistema processual é que define o comportamento da Justiça. O cidadão só deseja a concepção de Justiça rápida quando é para seu desafeto ou seu vizinho. Quando é para ele próprio, quer que o juiz tenha a maior cautela.
Folha - O senhor não acha que se a polícia mostrasse eficiência não faria o cidadão se sentir mais seguro e inibiria o criminoso?
Adão Rosa - Sem dúvida. A ação preventiva e investigativa inibe o crime. Mas, se a polícia não estiver bem aparelhada e com efetivo adequado, ela terá mais trabalho.

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