São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os filhos do Grande Inquisidor

ROBERTO ROMANO

A CNBB deseja converter políticos. Mas ainda não explicou o sumiço do dinheiro enviado aos bispos do Nordeste pela Igreja européia e posto nas mãos de um "administrador". Verba destinada aos pobres. Há mais.
É genocídio deixar um povo à margem da ciência. D. Castanho critica este jornal por sua atitude contra a catequese paga pelo Estado (Folha, 22/1). O anzol é jogado: "Por que sobrepor o mero ensino à verdadeira educação, que é a formação integral do educando?" Tapa no rosto dos professores: aos milhares e nas piores condições, ainda ensinam alguma ciência à juventude num país onde analfabetos são joguetes de "autoridades civis, militares, eclesiásticas". 29 de junho de 1973. Alguns homens reuniram-se para "dialogar": o presidente e o secretário-geral da CNBB, o presidente da Comissão Justiça e Paz, o comandante dos fuzileiros navais, o chefe substituto do SNI, o comandante da Vila Militar do Rio de Janeiro, um membro do Conselho Federal de Educação e da Escola Superior de Guerra. O resumo do conclave ainda não foi publicado no Brasil.
Existe uma cópia no Dial, núcleo francês de memória. D. Fernando Gomes redigiu o texto. Enfatizou o apoio da igreja "à Revolução de 64, que foi feita contra o comunismo, a subversão e a corrupção, visando reformas de base de acordo com a Declaração dos Bispos de 30 de abril de 1963". Quem era "a" Igreja naquela hora? Os leigos nos cárceres? Os políticos de solidéu com sua velha diplomacia?
Os dirigentes celebraram o "Te Deum" pela violência de 64, apoiaram o AI-5. Tudo na "melhor das intenções", que já presidira alianças com Hitler, Mussolini, Franco, Vargas, Pinochet e outros devoradores de povos. Li muitos papéis eclesiásticos sobre os acordos com o poder. Mas um texto literário desvela o procedimento da hierarquia:
"À Santa Igreja foi prometida a imortalidade, não a nós, como classe social... A igreja está destinada a nunca morrer. No seu desespero está implícito o conforto. E o senhor crê que se ela pudesse hoje, ou no futuro, salvar a si mesma com o nosso sacrifício, ela não o faria? Certamente, e faria bem" (Lampedusa, "O Leopardo"). Bispos e papas "negociaram" com todos os poderes, traindo aristocratas, burgueses, operários. Como diz Kant, é suspeito alegar santidade sem exame da razão.
No Islã "laicistas e ateus" são condenados à morte. Se igrejas ditam o direito público, são vetadas cosmologias estranhas à letra da Bíblia. Torna-se mortal defender direitos das mulheres, crime negar os "milagres" rendosos, retorna a caça ao candomblé, ao espiritismo. Vinganças são armadas pelo ressentimento.
Justificativas? As vítimas não pertencem à "maioria". Interroguem os católicos brasileiros: a maior parte exige a pena de morte e o fim dos direitos humanos. Isso depõe contra a Igreja. Seus filhos brasileiros matam no trânsito, silenciam sobre o trabalho escravo, calam as violências contra os índios, os negros. A turba marchou em 64 blasfemando o nome de Deus, terço na mão, manipulada pelos oligarcas. E garantiu um silêncio covarde sobre os abusos ditatoriais. Entre eles, a censura da imprensa.
Rousseau colheu a diferença entre vontade geral e a de todos. Se a massa trai o interesse comum, não representa a vontade universal. No Brasil cidadãos livres (bispos, padres e leigos como o grande Sobral Pinto) exerceram a vontade geral, contra a maioria, com riscos de exclusão. Vejam a carta "fraterna" de d. Carmine Rocco a d. Casaldaliga: "O método que o senhor vem empregando", diz o núncio apostólico, "expõe inutilmente seu ministério episcopal a ser utilizado para fins indesejáveis e sua pessoa, a medidas desagradáveis por parte da autoridade civil" (Brasília, Nunciatura Apostólica, documento nº 15.309, 2/6/1975).
Foi assim durante o nazismo, quando era vista como "inútil" a minoria católica democrática. "A Santa Sé editará disposições excluindo os eclesiásticos e religiosos dos partidos políticos e das atividades destes últimos" (art. 32 da Concordata entre a Igreja e o governo de Hitler). Ir contra o fuehrer era "atividade política, logo... Onde estavam os cristãos quando o nazismo esmagou os judeus? Entre os cúmplices. Carl Schmitt, vergonha dos juristas honestos, foi católico.
Os filhos do Grande Inquisidor esquecem Mateus: "E mostrou-lhe todos os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: 'Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares'. Aí Jesus lhe disse: 'Vai-te Satanás, porque está escrito: 'Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto'." Católicos: pensem antes de externar seu ódio. Mesmo como tática, a imposição do ensino religioso é desastrosa. Basta visitar escolas da capital paulista. Nelas crianças são obrigadas a ouvir pelo rádio pastores eletrônicos. Isso ocorrerá nos colégios estaduais.
"A messe é grande, poucos são os operários." Deixem os hierarcas o governo e tragam semeadores, não burocratas como os milhares prometidos para São Paulo. Funcionários pregam palavras, mas não palavras de Deus (Pe. Vieira). Os bispos trocam endereços. Como diz Vieira, eles confundem passos das Escrituras com os paços do rei. Pedem a César os catequistas, receberão centuriões.
O catolicismo político, se não for exorcizado, ainda afastará muita gente da igreja. Como o diabo é servido.

Texto Anterior: Transplante de órgãos
Próximo Texto: A Califórnia é aqui
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.