São Paulo, segunda-feira, 4 de março de 1996
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Transplante de órgãos

DARCY RIBEIRO

A presença por dois dias de Luiz Fernando dos Santos acampado diante do edifício do Congresso numa greve de fome atípica produziu um belo efeito.
A greve dele era negar-se a fazer hemodiálise até morrer, a fim de pressionar os senadores a votarem a lei que passará a reger o transplante de órgãos.
Sua força, porém, é que encarnava ali as dezenas de milhares de pessoas que aguardam um transplante de um órgão para sobreviverem. Com sua greve atípica conseguimos que fosse dada urgência ao projeto que foi votado no dia 29 último e aprovado por unanimidade.
Seguiu já para a Câmara dos Deputados, onde precisamos renovar as pressões para que seja prontamente aprovado.
Essa lei que eu propus visa superar a situação vergonhosa do Brasil nessa matéria. Somos o único país que exige, para que um órgão de um morto seja transplantado para salvar um vivo, que o morto, enquanto vivo, procure um cartório e faça a competente doação.
Em razão dessa tolice assassina dezenas de milhares de pessoas esperam por um coração, um fígado, um rim para substituir os seus que estão enfermos e incuráveis, ou de olhos para recuperar a visão.
Em nenhum país do mundo se fazem tais exigências e, por isso, em nenhum lugar existem as filas imensas de doentes clamando por um transplante.
A lei que proponho inverte o procedimento, determinando que deve procurar um cartório quem não queira doar nada do seu corpo para salvar vidas. Essa minoria é que deve ir a qualquer cartório para obter um carimbo de não-doador gravado na sua carteira de identidade.
Assim se asseguram os direitos de quem tem razões para não ser doador -como ocorre com os judeus, por motivação religiosa-, sem converter automaticamente todos os brasileiros em não-doadores.
Efetivamente, todas as dezenas de milhares de pessoas com menos de 50 anos que morrem vítimas do trânsito ou da violência têm seus cadáveres intocáveis por força da lei vigente.
Nossa lei toma naturalmente os cuidados indispensáveis para que não haja abusos nessa matéria tão delicada. Para isso estabelece que só se podem realizar transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo nos hospitais públicos ou credenciados, sob os quais se exercerá permanente vigilância.
Acresce que qualquer forma de traficância com órgãos passa a constituir crime inafiançável, imprescritível e insuscetível de graça, indulto, suspensão condicional, redução de pena ou qualquer modalidade de cumprimento da pena em liberdade.
Minha Lei dos Transplantes, cujo relator foi o senador Lúcio Alcântara, representa, como se vê, uma inovação indispensável na legislação brasileira quanto a uma questão relevantíssima.
Os transplantes que se vêm realizando há décadas ampliaram enormemente sua aplicação graças a novas vacinas e antibióticos, que estão permitindo a milhões de pacientes recuperar a saúde.
A legislação vigente, em sua estreiteza anacrônica, coloca o Brasil fora desse quadro, condenando à morte dezenas de milhares de brasileiros a cada ano.
Em sua forma confusa e caótica ela pretende o impossível, que é levar as pessoas a uma conscientização humanística tal que as converta, durante a vida, em doadores post-mortem.
Nosso projeto, ao contrário, regula toda a matéria e só obriga a procurar um cartório quem não queira doar nada para transplante. Todos nós outros seremos depois de mortos doadores virtuais.

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