São Paulo, quarta-feira, 6 de março de 1996
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Os Mamonas encenaram o destino do Brasil

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nunca tinha ouvido o CD dos Mamonas Assassinas. Mas senti bastante com a morte do grupo: coisa injusta, tão no começo do sucesso; mal apareciam, e desaparecem estupidamente. Eles ainda estavam encantados, felizes com os recordes de vendagem; não eram desses astros blasés, que estão sempre mal-humorados e fazendo exigências para apresentar-se em público.
Basta ler o texto de agradecimentos que há na contracapa do CD. Dedicam o disco a todo mundo: "A nossos pais, irmãos e familiares (...) aos nossos amigos (...) e a todos que ajudaram na realização deste trabalho. Ao pessoal do avião (que serviu um rango na hora de nossa viagem para os USA); ao Santos Dumont (que inventou o avião, senão a gente ainda tava indo mixar o disco a pé); ao Gozales (mexicano clandestino que arrumava nossos quartos no hotel)... e a DEUS, que foi quem mais ajudou e esteve sempre ao nosso lado."
A pureza desse texto é irresistível. Tem a graça de uma criança que é surpreendida com um presente fora de hora. E também o toque sinistro, involuntário, de agradecer justo a Santos Dumont, antes de morrerem todos num desastre de aviação. O fato é chocante porque surge não como a morte de ídolos populares -coisa que não me comove muito-, mas sim como a morte de crianças.
Os Mamonas faziam sucesso com as crianças, e veio daí uma enorme onda de escândalo e de antipatia por parte dos adultos. Ouvi finalmente o CD. Gostei. Tento entender o escândalo e o sucesso.
Claro que há letras de grande baixaria, e com referências sexuais das mais cruas."Vira-Vira" conta a história de uma portuguesa que voltou de uma suruba "toda arregaçada". "Sabão Crá-crá" é impublicável. Mas minha experiência é que piadas sujas não corrompem a mente infantil. Há como que uma censura prévia na cabeça das crianças, causada pelo desconhecimento dos pormenores do erotismo.
Lembro-me que, com seis anos ou menos, ouvi uma piada muito corrente entre as crianças da época. "Sabe o que o pires disse para a xícara?" Eu não sabia, claro. Sabia muito pouco. "Ah, como sua bunda está quente". A criança dá risada, repete o chiste. E daí? Para o adulto, a piada tem referências altamente impróprias a uma das variantes da mecânica sexual. Para a criança, tudo parece vagamente "impróprio", sem que se saiba por quê; sem "dolo", por assim dizer.
Mas por que o sucesso? Fora o espírito de pura palhaçada dos shows, imagino outras razões. Os Mamonas parodiavam um tipo de música brega que é praticamente banido do gosto dos pais. Não que os pais não tenham um gosto igualmente infantil. Mas enquanto curtem Ivan Lins e Roberto, Gal e Beatles, proscrevem da discoteca a música sertaneja, Valdick Soriano, Chitãozinho e Xororó. Esta é a música verdadeiramente popular, a música da empregada -enquanto a "MPB" se faz mais sofisticada, no exclusivismo social de sua sigla tecnocratizante; música para tecnocratas.
Ora, as crianças de classe média vivem nesse limbo social que existe entre a empregada e a mãe. Sabem que a música apreciada pela doméstica não é de bom tom. Conhecem, por outro lado, privações monetárias. Ter uma criança em casa é às vezes a mesma coisa que ter o Vicentinho -reivindicações com extrema combatividade, negociações complicadas em torno dos faróis ou dos freios da bicicleta, a CUT no lar.
A simplicidade irresistível de um Valdick Soriano, seu melodismo aberto, contrastam com as dissonâncias forçadas de uma trilha de Edu Lobo. A criança prefere Valdick. Mas sabe -e a empregada também- que Valdick é demais. Nada melhor, então, do que ouvir Mamonas: "Pelados em Santos" ou "Bois Don't Cry" fornecem o mesmo melodismo brega, sob as tintas da paródia.
Mas os Mamonas eram mais que isso. Ouvindo o CD, fiquei empolgado com a precisão das imitações. Imita-se o sotaque nordestino, o sotaque "santista" de Pelé, o comer de sílabas de Belchior, as vogais de Valdick, as consoantes de um gay -tudo com a maior precisão. A cada faixa, estamos num subgrupo social diferente, que os Mamonas fotografavam com requintes de perversidade classista.
Não é só imitando os sotaques sociais e regionais que os Mamonas revelavam extremo poder de observação. As letras são brilhantes na ironia. O peão de obras vai ao shopping center, e se encanta: "Quanta gente/ Quanta alegria/ Minha felicidade é um crediário nas Casas Bahia". O retirante chega a São Paulo com seu jumento, e submete-o a um tratamento moderno: "Fiz a pintura, importei quatro ferradura", como se fosse um carro.
Ironiza-se, portanto, a classe baixa. Mas a questão não é tão simples. O nordestino que fica louco com o mundo cosmopolita ("Não vejo a hora de descer dos andaime/ Pra pegar um cinema, ver Schwarzenegger/ E também o Van Damme) não é apenas o pobre-coitado arrebatado no redemoinho globalizante, digno do riso de quem já sabe a diferença entre Brasil e Estados Unidos, por ter viajado a Miami.
O ponto de vista dos Mamonas não era simplesmente o de quem, situado no topo da burguesia de Guarulhos, desprezasse as inconveniências do baiano que compra (no Paraguai) um Reebok e uma calça Fiorucci, cujo nome pronuncia errado, "Fiorussi". A crítica ia além do classismo odioso que está presente, por exemplo, no Casseta e Planeta. Havia algo de pungente nessa imitação perfeita dos ideais populares, que se orientam apaixonadamente rumo ao universo da integração econômica.
Como se todos nós fôssemos nordestinos hipnotizados com os shoppings de São Paulo. Os Mamonas encenaram, com tom de farsa, o destino do Brasil. Esta última frase é um pouco grandiloquente. Mas é verdadeira. Até pelo fato de que revela o intuito de diferenciação social mínima que existe entre a classe média de Guarulhos e esses estranhos, a classe C e D do subúrbio de Guarulhos.
Nesse intuito de diferenciação (não, nós não gostamos de Valdick, ouvimos só para gozar dele) há um misto de discriminação e de solidariedade. De encanto "antropofágico" pela bizarrice brega e de encanto emotivo pela música da empregada ou da mãe.
Atitude crítica, mas também ambígua, diante da modernização do país. Ou, como eles próprios dizem numa paródia do rock americano: "Shake your head, sucker! No more ideas, it's over". Para os Mamonas, it's over também, e é uma perda. Ou uma "perca", como dizem alguns.

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